Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Se você mora em Berlim ou está com uma visita à capital alemã nos planos, não deixe de acompanhar o meu guia cultural semanal: The Next Day Berlin.
Trilha sonora para esta edição: A Thread, Silvered and Trembling, by Drew McDowall (para ouvidos que gostam de música experimental)
Essa não é uma edição sobre música experimental, mas sobre o ato de assistir a um show com um olhar mais contemplativo. Por isso, compartilho três experiências distintas: uma performance de voz, um DJ set para audição e uma performance de música experimental.
Ato 1: Lydia Lunch
Chego ao Hamburger Bahnhof, meu museu favorito em Berlim, para assistir à performance de Lydia Lunch, figura punk emblemática dos anos setenta e oitenta. Lunch é escritora, poeta, cantora e atriz, amiga de Nan Goldin e Asia Argento, colaborou com Sonic Youth e Nick Cave, e teve o prefácio de um de seus livros escrita por Anthony Bourdain.
Foi montado um palco na escadaria em frente à entrada principal do museu onde repousam uma guitarra e dois microfones. Apesar do frio, a tarde está bonita, e as pessoas estão mais chiques que de costume. É o outono chegando!
Às seis horas em ponto, um homem sobe ao palco, pega a guitarra e começa a fazer ruídos. O som agudo se espalha, e as pessoas se afastam. Não demora para Lydia aparecer, com os mesmos cabelos pretos lisos nos ombros, olhos pintados de preto, batom vermelho e vestida de preto da cabeça aos pés como sempre.
Ela se senta nos fundos do palco, pega uma garrafa de uísque e se serve. A guitarra continua sendo tocada de maneira estridente como se algo quisesse sair de dentro do instrumento. Lunch se levanta, vai até os microfones e somos brindados com um momento de silêncio. Me sinto aliviada. Ela segura um dos microfones com as duas mãos, fecha os olhos, faz um discurso acalorado em um microfone e canta no outro, como se duas pessoas se apresentassem juntas. Critica o capitalismo e grita para o público desligar os celulares: “Não estamos numa live, estamos aqui. Agora.”
As diversas câmeras desaparecem. Ela continua seu discurso criticando também as big techs e o fato de estarmos sempre conectados:
A liberdade é uma alucinação.
Estamos sendo rastreados.
A autora da frase “Eu nunca achei que nada do que fiz fosse chocante. Se você não aguenta por 20 minutos, tente viver isso por 40 anos” estava diante de nós, chicoteando-nos com suas palavras, como faz há décadas.
Ela termina o show e finalmente sorri. Um sorriso irônico. A plateia relaxa, mas seguimos desorientados.
Saio do Hamburger Bahnhof meio zonza, tentando absorver tudo. Assisto o sol se pôr enquanto atravesso a cidade pedalando para outra performance.
Ato 2: Lena Willikens
Vou pedalando do Hamburger Bahnhof ao Silent Green, um antigo crematório que virou espaço cultural. A próxima performance será uma sessão de audição com Lena Willikens. Estava curiosa, afinal, só a tinha visto incendiar a pista com seus primorosos sets de techno.
Nesta noite, ela se apresentará para uma plateia sentada. Por um momento, pensei que os lugares poderiam ter sido trocados, pois o clima sombrio do Silent Green combina mais com Lydia Lunch.
Lena entra, escolhe um disco no case atrás dela, coloca-o para tocar e demonstra leve desconforto. Será um set de uma hora tocando faixas da AUDMCRS Underground Dance Music Collection of Recorded Sound (2011-2012), coleção que inclui vinis de trance e música underground dos anos 90 e 2000, catalogados pelo artista Cory Arcangel. O objetivo do evento é explorar como a percepção muda ao transpor a música de seu contexto original para o formato de concerto.
Passamos uma hora sentados no escuro, ouvindo o set crescendo lentamente, do ambient a um momento quase dançante. Fui absorvida pelas ondas sonoras e pela Lena, quase entrando em estado meditativo.
A performance soou como um pedido de paz após o apocalíptico show de Lydia Lunch, como se elas tivessem combinado o começo, meio e fim do meu dia. O coração voltou a bater lentamente, o corpo se acalmou, e o sono bateu. Hora de voltar para casa e absorver essa dobradinha musical.
Ato 3: Drew McDowall
Já é outono. É sexta-feira fria, com o termômetro marcando oito graus. Saio do metrô e caminho por cerca de vinte minutos até chegar a um prédio que parece vazio. Atravesso um longo corredor e encontro algumas pessoas encolhidas de frio nos fundos.
Abro a porta de um prédio antigo de tijolos e vejo uma fila de pessoas na escada esperando para entrar. A sala está lotada. Sento-me de frente para uma mesa cheia de cabos coloridos, controladoras e um computador.
Lena Willikens se senta ao meu lado. Puxo papo com ela falando sobre a noite no Silent Green. Ela ri e confessa que foi um desafio, fazendo-a questionar se deveria ter topado. Nunca havia tocado uma seleção de discos feita por outra pessoa e de um estilo musical que não é o dela.
As luzes se apagam. Ficamos em silêncio. Entra o Drew McDowall, produtor escocês da cena de pós-punk e industrial, e entusiasta de sintetizadores modulares. Ele, que tem a mesma idade que Lydia Lunch, abre a performance batendo em um pequeno retângulo de ferro, ressoando um som levemente estridente por toda a sala.
Aos poucos, ele adiciona novos sons enquanto conecta e desconecta os cabos coloridos do sintetizador à sua frente, misturando música eletrônica, drone, industrial e música ambiente. O resultado são paisagens sonoras hipnóticas. A música é sombria, quase ritualística, provocando tanto desconforto quanto uma beleza estranha.
Estou em transe. O único estimulante que tenho no corpo é o açúcar de uma limonada. A música cresce até explodir como partículas no espaço. Viro poeira. Estou chapada de som.
O show termina. Em mim ainda reverbera as ondas sonoras que dissolveram tudo ao meu redor.
Desço as escadas, abro a porta e recebo uma lufada de vento gelado na cara, me devolvendo à realidade. Uma ambulância passa, com seu alarme estridente, trazendo-me de volta a Berlim.
Epílogo
Nos últimos tempos, esse tipo de experiência tem sido meu lugar comum em Berlim. Tenho preferido as performances de música experimental ou audições à festas. A meia-idade chegou? Pode ser, mas para mim essas experiências reafirmam o poder que a contemplação e a escuta ativa têm em um mundo saturado de telas. A contemplação se torna uma forma de resistir ao capitalismo. É nesse espaço de escuta e presença que tenho insights, novas ideias e, principalmente, esperança de dias melhores.
Esse aumento na busca por experiências auditivas imersivas reflete a maneira como percebemos o mundo hoje. Vivemos num planeta nervoso.
Fui a outros shows depois desses três, e um dos meus favoritos foi o da artista chinesa Temple Rat. Ela mistura vários elementos, como água, efeitos e distorções sutis, o erhu (um instrumento de cordas chinês) e até o som de um celular tocando, com techno minimalista e batidas industriais, criando belas paisagens atmosféricas que alternam entre o orgânico e o mecânico. O resultado é um som cinematográfico, imersivo e em constante evolução.
Aqui abro aspas: O show aconteceu em um club que fica no meio de um parque em Berlim. Quando saímos de lá, nos deparamos com uma aurora boreal cor-de-rosa acima das nossas cabeças. O momento de contemplação continuou ali de maneira visual.
Gosto de eventos sonoros onde a única distração é o nosso próprio pensamento. Em um mundo em que a música está cada vez mais compacta, com o tempo de atenção quase nulo e o ruído das redes sociais tão barulhento, sinto que a crescente oferta e procura por eventos sonoros contemplativos é uma resposta para desacelerarmos.
Essas performances se tornam um contraponto à cultura de hiperconexão e convidam à reflexão sobre nossa relação com o mundo, além de proporcionar uma escapada da cacofonia do dia a dia.
Para ir além
🎧 A Lydia Lunch tem um ótimo podcast em inglês, ‘Lydia Spin’, onde ela conversa de maneira bem-humorada e provocadora, como só ela sabe fazer, sobre música, arte e cultura, com uma lista de entrevistados nada óbvia.
🎞 Lydia Lunch também ganhou um documentário que eu ainda não consegui assistir: Lydia Lunch: The War Is Never Over (2019), porque não ouso piratear morando na Alemanha e ainda não o encontrei disponível por aqui.
💌 Gosto muito de duas newsletters focadas em música experimental e ambient: zensounds by Stephan Kunze e Flow State.
🎹 Para quem está em São Paulo e quer experimentar noites como as que tenho ido em Berlim, eu convido a conhecer a Protopia, projeto lindo do meu amigo & sócio Rodrigo Guima.
🔊 Sempre visito o Sonic Pavilion, de Doug Aitken, quando vou a Inhotim. É de lá que se ouve o som da Terra.
🇧🇷 Novas Frequências é um festival de música experimental respeitado na cena internacional. Ela rola em dezembro no Rio de Janeiro. Já quem comanda a mesma cena em São Paulo é o Música Estranha Festival, que acontece agora em novembro.
📋 Uma lista de artistas mulheres brasileiras da música experimental (2017).
🇯🇵 O projeto Seitō {青鞜} reúne artistas femininas japonesas de diversas vertentes da música eletrônica e experimental.
✨ A escuta como estado contemplativo.
Mudando de assunto antes de ir
🇫🇷 Por aqui (leia-se Europa) só se fala na francesa Zaho de Sagazan. Ela acabou de fazer um show pequeno em Berlim, mas já foi escalada para tocar numa das maiores casas de shows da cidade no próximo ano. Nesta sexta-feira, ela lança seu novo álbum ‘La symphonie des éclairs (Le denier de desvoyages)’.
🔔 Um monte de gente me enviou a notícia sobre a nova ópera da Florentina Holzinger em que 18 pessoas passaram mal. Já assisti a 4 performances dela e amei todas elas. Se der tudo certo, em poucas semanas verei a nova ópera. Escrevi sobre seu trabalho aqui.
📕 Sou muito fã da
, autora de uma das minhas newsletters favoritas, , e fiquei muito feliz com a notícia de que seu novo romance Como se fosse um monstro está entre os finalistas do Prêmio Jabuti. Recentemente, terminei de ler Apague a luz se for chorar e recomendo bastante a leitura.🧘🏻♀️ Outro livro que deu uma sacudida por aqui foi da
: o mágico 108, em que ela narra sua experiência vivendo em um ashram. Recomendo tanto a leitura quanto assinar a newsletter . Mexeu tanto comigo, que em dezembro passo uns dias em um retiro num ashram em Rishikesh, na Índia.📺 Estou viciada na nova série Disclaimer, da Apple TV. E, adorando a estética e a série alemã Where’s Wanda?, também da Apple.
Aprendo tanto lendo sua newsletter. Obrigada!
Um beijo.
Lalai, adoro sua generosidade em compartilhar seus achados, aprendo muito e ainda sou contemplado com um baita texto bom de ler!