Espiral #21: o que o fim do verão tem a ver com ansiedade?
Ai Wei Wei, Angela Davis, Lauryn Hill, Burning Man, Hayao Miyazaki e muita música
Hoje venho carregada de música: tem trilha sonora bem visual com a dupla Mathame tocando no belíssimo Vulcão Etna, na Itália, com Moby, Monolink, ID e até Sigur Rós no set. Uma trilha mais curtinha e feliz com o Bob Moses ft. RY X & Frank Wiedemann, e outra cheia de lindeza da PJ Harvey “From the Basement”.
O verão e a ansiedade
Sabe quando um paciente está muito mal, de repente melhora, todos comemoram e aí ele morre na sequência? Então, é como estou achando que será o fim do verão por aqui.
Continuo fascinada com as estações do ano mudando sem emendar uma na outra de forma que podemos percebê-las. As árvores na frente da minha janela, todas com mais de 15 metros de altura, são hoje o meu relógio do tempo. É notável como elas mudam diariamente e aos poucos vamos vendo essas mudanças tão sutis. Passei a fotografá-las para ter um registro do quanto a natureza é poética e mágica e analisar melhor essas sutilezas.
O meu marido, o Ola, não está trabalhando às sextas-feiras desde o início de agosto. Os meus dias são moldados de acordo com os dele desde que cheguei em Berlim. Se ele tem um dia livre, opa, eu tenho também. Isso me trouxe a disciplina necessária para eu fazer as coisas que me propus a fazer, estudar e trabalhar nos projetos que surgem de vez em quando.
Na última sexta-feira a previsão era de um dia ensolarado com 36 graus. Acordamos animados planejando voltar ao nosso novo lago favorito, o Tom Zé (Tonsee).
Eu queria voltar ao Tonsee porque minha primeira experiência nele foi tão incrível, que eu quis revivê-la. Tentei repetir as coisas que fizeram da primeira vez um sucesso, desde a roupa que vesti até o meu cooler cheio de comidinhas e bebidas.
Acabamos indo para lá mais tarde do que prevíamos, mas ainda assim aproveitamos umas quatro horas no meio de um bosque com esse belo lago à nossa frente. Porém, obviamente foi tudo bem diferente a ponto de eu me sentir em outro lugar. Eram outras pessoas comigo, outro horário, uma sexta-feira, outro mood. Same same but different. Eu estava com duas amigas que gosto muito, com o Ola e mergulhada num clima fresco, mesmo com os 34 graus, proporcionado por árvores muito altas que pairavam sobre nossas cabeças. Mas no fundo eu estava ansiosa e não sabia o porquê. Eu fiquei o tempo todo grudada no celular e rolando na minha canga. A situação piorou quando as minhas amigas foram comprar vinho e o Ola precisou mudar o carro de lugar para não levar uma multa. Eu me vi sozinha e meio perdida no meu pequeno paraíso. A bateria do celular acabou e eu não consegui me concentrar no livro que levei pra ler. Estava difícil relaxar naquele momento tão lindo. Deitava, sentava, andava até o lago, molhava os pés, voltava, deitava…. e assim foi até eles voltarem.
Ficamos por lá até umas 20h30 quando o sol se pôs no horizonte. Um dos comentários recorrentes nesse dia foi “vamos aproveitar que esse é o último dia de verão do ano, talvez de lago também”.
Depois dessa sexta-feira a temperatura só desceu ladeira abaixo e o sol desapareceu. Agora estou no meio de um pequeno vendaval. Minhas árvores vizinhas andam bem nervosas anunciando que o outono está chegando. Provavelmente teremos alguns dias quentes, mas aqueles que de fato anunciam o fim. A melhora. O último suspiro alegre. A morte anunciada. A luz que se apaga.
Uma amiga estava em férias num lugar idílico banhado pelo azul do Mediterrâneo numa viagem dos sonhos. Último dia, sol, passeio de barco e pah, bateu uma ansiedade monstra. Quando recebi sua mensagem sobre o assunto, eu saquei que esse prenúncio do fim do verão era o que estava me deixando ansiosa. Fui então investigar o porquê.
Na minha análise, um dos principais motivos é a uma preocupação sobre como será Berlim ainda na pandemia sem o verão. Vamos voltar a ficar trancados em casa até que seja possível se esticar novamente no sol? Os restaurantes vão fechar as portas de novo? Ainda será possível ver todas as exposições que eu não fui porque queria aproveitar os dias tomando sol na cara? Vou poder receber amigos em casa? Vou poder encontrar meus amigos? Ontem uma amiga me convidou para ir num bar que gostamos muito. Junto com a mensagem veio “vamos aproveitar para ir enquanto pode.” Meu corpo enrijeceu.
Continuamos vivendo e sentindo tanta coisa nova nesse mundo pandêmico que a vida virou uma montanha russa. O término de um ciclo pode anunciar o fim de várias coisas que estamos usufruindo, provocando assim essa ansiedade porque as certezas que costumávamos ter não existem mais.
O coronavírus x Berlim….
Continuam rolando protestos contra as regras criadas para diminuir a contaminação do coronavírus. Para os manifestantes o vírus não existe. Uma manifestação nacional, prevista para este sábado em Berlim, foi proibida porque os manifestantes não respeitaram as regras na última que fizeram. Mas claro, eles não acreditam no coronavírus. Os organizadores estão tentando derrubar a liminar de proibição na justiça, enquanto alguns de seus apoiadores pedem que as pessoas tomem as ruas à força e usem armas se necessário.
Porém, proibir uma manifestação, independente do objetivo dela, não é visto com bons olhos na Alemanha. Protestar é um direito de todos mesmo para quem acredita em teorias conspiratórias. Este texto (em alemão, mas nada que o tradutor do Google não dê conta) fala exatamente sobre o problema em proibir o direito à liberdade de expressão.
Os números de novos casos de pessoas com coronavírus tem oscilado em Berlim, mas ainda seguimos no “sinal verde”. A Alemanha está atualmente com cerca de 16 mil pessoas com coronavírus. Em Berlim temos 42 pacientes internados, com 18 deles na UTI. Nesta quinta-feira foram lançadas novas medidas de prevenção ao coronavírus na Alemanha, que teve um aumento nos números de casos alto em relação aos meses anteriores. Passa a ser cobrada multa de 50 euros em todo o país para quem não usar máscaras nos locais obrigatórios e a não haverá indenização para pessoas que realizaram viagens evitáveis a regiões consideradas de alto risco e contraírem o coronavírus.
Entenderam a ansiedade x fim do verão? É resultado do medo de voltar a viver o dia da marmota.
Mas na contramão das notícias ruins (eu tinha prometido que não seria porta voz delas, mas hoje não deu), o Senador de Cultura de Berlim criou o “Tag der Clubkultur” (Dia da Cultura do Clube), um festival que escolherá 40 clubes e/ou coletivos que representem a diversidade da cena cultural da cidade para se apresentarem em 3 de outubro. Serão pagos 10 mil euros para cada apresentação. :)
Ah lá, uma rapidinha sobre a falsa impostora
A minha última newsletter causou um rebuliço nas minhas redes, o que foi ótimo. Recebi mensagens de muitas pessoas que se identificaram com a minha fase de impostora agonizante. Eu senti muito por todas elas. Mas essa troca foi muito boa, porque quando nos identificamos no problema do outro, entendemos o que estamos sentindo. Ou seja, nesse caso sacamos que não somos impostoras. Temos apenas uma síndrome para ser tratada. Foi assim comigo. Reconhecer um problema é o pontapé inicial para resolvê-lo. Por aqui, essas conversas abriram um canal enorme que começou a desentupir meu “ralo” interno. Haja sujeira saindo de lá de dentro. Obrigada a todos que me escreveram. <3
Achados de arte, literatura, moda, Hayao Miyazaki e Angela Davis
Frame de Coronation, de Ai Wei Wei
O Ai Wei Wei produziu o documentário Coronation durante o lockdown em Wuhan, na China, com a ajuda de voluntários que moram na cidade. O resultado mostra Wuhan numa versão pós-apocalíptica e a nova rotina que tomou conta da cidade durante a quarentena.
Também em Wuhan, a premiada escritora chinesa Fang Fang escreveu um diário durante seu lockdown. Na época, ela disse numa entrevista ao NYTimes que “se os escritores têm alguma responsabilidade diante de um desastre, a maior delas é dar o seu testemunho”. Desde então Fang Fang é considerada uma traidora na China porque os nacionalistas consideram que ela “entrou no jogo do Ocidente, que está contra o país”. O diário virou o livro “Wuhan Diary: Dispatches from a Quarantined City” com tradução para o inglês e recentemente para o alemão.
A designer Lydia Cambrom produziu uma odisseia no isolamento reconstituindo a cena final de “2001: Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. O resultado ficou demais!
A moda tem apresentado novos formatos bem interessantes para substituir os desfiles. Eu não tenho acompanhado tão de perto, mas vi alguns que gostei bastante.A Louis Vuitton apresentou sua coleção masculina Primavera-Verão 2021 com pocket show da Lauryn Hil; a Gucci apresentou a campanha Outono-Inverno 2020 da Gucci de maneira divertida com uma colagem de vídeos caseiros produzidos pelos modelos e o John Galliano deu uma aula sobre processo criativo na apresentação da coleção Outuno-Inverno 2020 da Maison Margiela.
Falando em processo criativo, o Hayao Miyazaki, fundador do Studio Ghibli, apresenta detalhadamente seu processo de criação e produção no documentário “10 anos com Hayao Miyazaki”, divididos em 4 episódios. Está disponível gratuito em streaming com legenda em português.
Numa entrevista ótima na Vanity Fair, a Angela Davis fala para a Ava Duvernay “Em minha mente, é a arte que pode nos fazer sentir o que ainda não necessariamente entendemos.” A entrevista toda é uma grande aula e termina com esse trecho: “Estou tão feliz que alguém como John Lewis foi capaz de experimentar e ver isso antes de falecer, porque muitas vezes não podemos realmente testemunhar os frutos do nosso trabalho. Eles podem se materializar, mas pode ser 50 anos depois, pode ser 100 anos depois. Mas sempre enfatizei que temos que trabalhar como se a mudança fosse possível e como se essa mudança acontecesse mais cedo ou mais tarde. Pode não ser; podemos não conseguir testemunhar isso. Mas se não fizermos o trabalho, ninguém jamais testemunhará.”
A Vanity Fair convidou o escritor e jornalista Ta-Nehisi Paul Coates para ser o editor da edição especial de setembro, a “Great Fire”. Achei foda dar a edição toda para ser ocupada por vozes negras numa revista que é majoritariamente ocupada por brancos.
Adorei o bate-papo sobre a dificuldade de ver a arte e criatividade como profissão no novo podcast “Profissão Artista”.
As rapidinhas…
Pegando um gancho na menção ao John Lewis, que morreu em julho logo após ter sido lançado um documentário sobre sua vida e legado, o “John Lewis: Good Trouble”.
A DJ Mag publicou duas ótimas análises, uma sobre a cena da dance music pós-pandemia destrinchando os novos modelos que surgiram e que vieram para ficar; e a outra sobre o futuro do turismo do techno que é responsável por uma alta receita em diversos lugares do mundo, como em Berlim que em 2018 movimentou de 1,5 bilhão de euros na economia da cidade.
A Apple Music tem agora em seu catálogo os 200 sets mais influentes feitos no Boiler Room em seus 10 anos de história.
A Elástica publicou um artigo bem bacana listando as mudanças em curso que a pandemia apressou.
O Youpix Summit 2020 rola online nos dias 1, 2 e 3 de setembro. Vai ser gratuito e a programação está imperdível para quem trabalha com o mercado de influência.
Brian Solis e Domenico De Masi participam do festival santista CriAtivar para discutir como a criatividade pode ser condicionada pela relação humana com a própria atividade laboral e o tempo. O CriAtivar acontece de 24 a 27 de setembro no perfil @festivalcriativar.
Para ficar de olho: estão surgindo vários negócios de moda que criam roupas apenas para uso virtual.
Eu queria o Silvio Almeida para presidente do Brasil.
O arquiteto e pesquisador Rodrigo de Moura está produzindo uma série caprichada sobre a casa, o primeiro é sobre a casa como lugar da intimidade, enquanto no segundo ele apresenta ideias de como construir uma habitação adequada. Dentro do mesmo assunto, o texto Home Body começa falando sobre como a casa tem mudando desde o início da pandemia.
Para assistir eu recomendo o filme brasileiro “Músicas para morrer de amor”, que acabou de ser lançado e é uma poesia musical só; o mini doc sobre o John Shepherd que dedicou 30 anos de sua vida tentando contato com extraterrestres enviando músicas do Kraftwerk, Harmonia, Fela Kuti e mais uma lista incrível de artistas dos anos 70 para o espaço; a nova série alemã, Biohackers que explora os limites da ciência; e Blue, de Derek Jarman, inspirado nas idéias do pintor francês Yves Klein e em reflexões pessoais sobre a arte, poesia, memória, tempo e a morte (Obrigada Rogério Velloso e Fábio Allves pelas dicas).
A The Blessed Madonna conta nesta ótima entrevistas um pouco sobre sua carreira, seu ativismo e seu recente trabalho com a Dua Lipa. Eu fiquei ainda mais fã dela.
O podcast Freestyle, encabeçado pelo trio Lucio Ribeiro, German Carmona e a maravilhosa Dani Cachich voltou para uma segunda temporada. A reestreia é com outra maravilhosa, a médica e amiga Mariana Perroni numa conversa sobre a medicina no futuro. Adorei saber que a Mariana e o Lucio se conheceram na mesma fila do show no SXSW que eu conheci meu adorável amigo Gabriel.
Uma coleção linda de sons da floresta para relaxar e viajar por florestas do mundo todo.
O CTM Festival, que acontece em Berlim, está com inscrições abertas para receber projetos de músicos e produtores musicais para sua edição 2021, que acontecerá de forma híbrida, online e presencial.
Lindíssimo demais esse texto “João nunca esteve só”, de Olivia Byington sobre seu filho que tem Síndrome de Apert.
Com tanta gente negociando a ciência, eu deixo aqui o maravilhoso “Before and After Science”, do Brian Eno, para você ouvir.
Tchau, quem sabe a gente se cruza no Burning Man no domingo? Caso esteja por lá, não deixe de passar no espaço Visionary Palace, criado por um time incrível de artistas brasileiros.
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