Espiral: Berlim entre ruído e escuta
Entre Peaches, Latronico e um 'listening cafe', o incômodo que às vezes as cidades grandes nos traz.
🎧 Trilha sonora para esta edição: “Epic Wonder”, do toechter
Berlim sempre pareceu uma cidade onde ninguém te cobra presença. Você pode existir como quiser, ou nem existir direito se preferir. Pode sumir por dias, reaparecer sem dar explicações, viver no seu tempo. A liberdade, que tanto se fala ter na cidade, parecia estar em ser quem você quiser ser. Mas ultimamente ando desconfiada: será que essa liberdade ainda é real, ou só mais uma performance que aprendemos a encenar bem para parecer que pertence?
Ultimamente, Berlim começou a me incomodar de um jeito que não dava para empurrar com café e distração. Já citei aqui e volto a citá-lo: A leitura de “Perfeições”, do Vincenzo Latronico, me deu um tapa. O livro expõe com precisão uma Berlim limpa demais, repetitiva e sem fricção. Não é a Berlim hedonista ou libertária que está no nosso imaginário. É a que a gente vive sem perceber que está vivendo. Aquela que se veste de autenticidade enquanto se esvazia aos poucos.
E não é só Berlim. As grandes cidades estão todas ficando parecidas. A gentrificação global, a busca por uma estética que funcione bem no feed do Instagram ou numa coleção no Pinterest, e até os próprios algoritmos, têm feito o mundo parecer uma repetição infinita. Um café pensado para as redes sociais não precisa ser bom, basta ter luz natural, madeira clara, plantas penduradas e uma frase em neon. Um déjà vu estético que esconde um cansaço coletivo, bonito de um jeito anestesiante. Entramos no lugar e sentimos que já estivemos ali.
Foi nesse estado cansado que assisti a “Cut Piece”, com a Peaches, no Gropius Bau. Ela recriou1 a performance mais famosa de Yoko Ono, feita pela primeira vez em 1964. Setecentas pessoas e ingressos esgotados em poucas horas. Peaches entrou com um vestido rosa-choque justo, ombreiras pontudas, polainas de pelúcia. Sentou-se no centro do palco e ficou imóvel. Estava absurdamente linda. O público era convidado a subir e cortar um pedaço do vestido caro assinado pelo Rick Owens.
No começo, os gestos eram contidos. Algumas pessoas ajoelharam, cortaram pequenos fragmentos, agradeceram. Fui uma delas. Depois, tudo começou a acelerar até roubarem a tesoura. Uma, duas, três vezes. Um homem tentou rasgar com uma chave de casa, outro apareceu com uma faca de cozinha quase cega. O vestido foi se desfazendo, e o corpo dela, surgindo. Quando os seios ficaram nus, algumas pessoas tentaram cobri-los: jaquetas, camisetas rasgadas, bonés, adesivos com mensagens políticas. Cuidado ou censura? Uma mulher desenhou um coração com batom no seio esquerdo. Uma outra fez uma trança em seus cabelos e teve uma que tirou uma selfie ao lado da Peaches. Alguém colou um adesivo no seio direito “Protect the Dolls”.
Peaches seguiu ali magnífica, sem reagir. Dias depois, ela escreveu no Instagram:
“Cada apresentação é imprevisível. Desta vez, as pessoas me cobriram com suas próprias roupas, deixaram mensagens políticas ou levaram itens embora. Algumas se ajoelharam aos meus pés, sentaram ao meu lado, desenharam em mim ou até roubaram meus sapatos — e a tesoura, três vezes.
Cut Piece sempre provoca uma variedade de respostas emocionais, físicas e performáticas, transformando o público em participantes — e a mim, em objeto. Mesmo depois de 60 anos, continua sendo uma obra potente, atemporal, que desperta reações imprevisíveis e reflexões profundas.”
É isso. A artista fica imóvel, o público age. E o que acontece ali diz mais sobre quem participa do que sobre quem se oferece.
“Cut Piece” se mantém contemporânea porque se molda ao tempo em que é encenada. E em tempos em que tudo pode ser capturado, editado, guardado ou vendido, a pergunta que me faço depois de assisti-la é: o que estamos dispostos a cortar para fazer parte de algo?
Alguns dias depois da performance, fui conhecer um novo “listening café” em Neukölln. Um amigo que nem mora aqui viu num post no Instagram e me mandou porque achou a minha cara. Como adoro lugares dedicados à escuta, coloquei na lista e fui visitá-lo.
Adivinha com é o lugar? Madeira clara, decoração cuidadosa e minimalista, uma loja de vinil nos fundos e um sistema de som hi-fi. E num dos janelões, um colchão verde vibrante, combinando com o logo, deslocado de um jeito que me remeteu aos escritórios do Google, que prometem conforto mas servem mesmo para te manter acordado mais tempo.
A moda dos últimos dois anos é essa: abrir um lugar, instalar um sistema hi-fi e chamá-lo de “listening bar”, “listening café” ou até “listening restaurant”. E assim, a cada hora do dia, nasce um “listening space” em alguma cidade do mundo. Não é ruim, mas muitas vezes, parece mais sobre estética do que sobre escuta.
Fiquei ali por um tempo e saí sem saber o que exatamente fui buscar. Talvez um lugar onde eu pudesse me convencer de que quero estar em Berlim, mesmo quando tudo parece me dizer o contrário.
Na última quinta-feira, fui a um jantar comunitário do Refuge Worldwide a partir de um convite aberto no Instagram. O evento aconteceu no QG da rádio, um lugar espaçoso, simples e bonito, escondido numa praça charmosa em Neukölln, o mesmo bairro do tal “listening cafe”. A proposta era simples: cada pessoa leva um prato de comida, a refeição é compartilhada, e, quem puder, doa para uma associação local que apoia pessoas em situação de rua.
Dessa vez, o espaço estava vivo e diverso. As pessoas estavam ali porque tinham algo a oferecer. Era uma cidade que ainda acolhe, onde as pessoas se ajudam, trocam. Onde a multiculturalidade, uma das coisas mais bonitas de Berlim, aparece em toda a sua forma.
Foi como visitar a casa de alguém que reuniu conhecidos para compartilhar um jantar e se conectar com pessoas diferentes. Mal se via alguém com o celular na mão, quer dizer, pelo menos até um show lindo de morrer de saxofone acompanhado de batidas eletrônicas começar.
Voltei para casa emocionada, com a certeza de que em Berlim tem ainda bastante espaço de resistência, de improviso, de menos performance e mais troca real e autêntica.
Nas grandes cidades, não basta estar, é preciso ser alguém. A gentrificação não transforma só as ruas e aumenta os aluguéis; ela também nos empurra para versões de nós mesmos mais aceitas, mais editáveis. Em Berlim, isso acontece devagar, quase sem a gente perceber. E de repente, até a liberdade parece roteirizada.
Como diria Clément Rosset2, criamos duplos da realidade para torná-la suportável, mas, nesse processo, perdemos a experiência do real em sua forma mais crua fingindo uma autenticidade que se dissolve sem que a gente perceba.
E ainda assim, resistimos em pequenos jantares comunitários, em espaços sem curadoria, em músicas tocadas de improviso, em conversas onde o celular não pega. Ainda há refúgios onde Berlim respira por conta própria — e neles, talvez, resista a contracultura que fez essa cidade ser o que é. Mas nada garante que isso dure.
O maior incômodo com Berlim talvez não seja a velocidade com que ela está mudando, mas a dificuldade de perceber quando a gente começa a, sem querer, mudar com ela no que é negativo nessa mudança. Quando começamos a representar alguém que não somos.
“Cut Piece” escancara isso. A entrega da artista vira vitrine para o que o público quer fazer com ela. E o que acontece ali não é culpa, nem catarse. É só o reflexo de uma necessidade de marcar presença, mostrar que esteve lá e ainda conseguiu levar um pedacinho dela para casa. Eu não saí ilesa dessa.
Berlim cobra presença em silêncio. E se a gente não prestar atenção, vira só mais alguém performando no palco que a cidade se transforma - e isso vale para qualquer cidade grande.
E talvez seja esse o ponto: a Berlim pela qual me apaixonei segue aqui. Mas, para encontrá-la de verdade, eu preciso entender melhor o que eu quero dela. Ou talvez eu esteja apenas exausta.
Não estou cansada de Berlim. Pelo contrário, a cidade continua me encantando, surpreendendo e me ensinando algo novo todos os dias. Ouso dizer que tem me ajudado a me tornar uma pessoa melhor.
Mas não existe cidade grande perfeita. Elas muitas vezes exigem de nós mais do que somos capazes de dar. Talvez esse seja o motivo por trás do êxodo urbano, uma alienação e exaustão emocional e física que vai consumindo nossa energia até a gente não ter forças para sair do sofá.
Tenho altos e baixos, sinto saudades da família, dos amigos, da minha zona de conforto e tudo mais que deixei para trás. Mas, por ora, é aqui que quero estar, porque só agora começo a entender o que vim fazer aqui e as coisas estão só começando a acontecer. ♡
Circle of Trust
📚 Lendo “As coisas como elas são. Uma iniciação ao budismo comum”, de Hervé Clerc;
🎬 Assisti e gostei de “Parthenope”, de Paolo Sorrentino. Fotografia belíssima, uma boa dose de cafonice e me deixou apaixonada pela atriz Celeste Dalla Porta;
🪩 Fui ao cinema ver a estreia de “Cornucopia”, da Björk. Não é uma empreitada para quem não é muito fã, porque é literalmente o show dela gravado em Portugal na íntegra e mais três músicas de bônus no final. Eu saí de lá com a certeza que sempre tive sobre ela: Essa islandesa porreta é genial;
👩🏻🍳 Um dos meus prazeres recém-descoberto é cozinhar. A cozinha virou meu canto sagrado e nela tenho ousado um bocado. Por ora, aprendo receitas, macetes e já estou até improvisando com sobras na geladeira. Deixo aqui a receita mais gostosa que preparei no último mês: Tofu assado com za’atar, grão-de-bico, tomates e tahine ao limão - o link está como presente, caso não consiga abrir e queira muito, me dá alô;
ᥫ᭡ A Carol Bensimon traduziu “A trama das árvores”, de Richard Powers, e conta aqui sobre o processo da tradução e um pouco sobre a história. Por aqui, já comprei e entrou para a fila das próximas leituras.
🗓️ Se você estiver com viagem planejada para Berlim até agosto, não deixe de visitar a exposição da “Yoko Ono: Music in Mind”, no Gropius Bau. Caso esteja pela cidade no dia 7 de junho, me dê alô para se juntar no meu picnic de aniversário para celebrar o ano novo de cinco Geminianos, incluindo eu;
Fiz uma série curta com meu amigo e fotógrafo Angelo Dal Bó chamada “Friday Lunch”. A ideia foi apresentar restaurantes que gostamos, não necessariamente novidades em Berlim. Mas, se você estiver com planos de vir para cá, salva ela para conferir, porque só tem delícias nessa lista.
🎧 Para fechar, deixo esse álbum ótimo: anónimo, Juana Aguirre, e o episódio “Pertencer (o que eu poderia ter feito diferente)”, do Elefante na Neblina.
Tchüß ♡
Peaches apresentou “Cut Piece” pela primeira vez em 2013, no Meltdown, em Londres, a convite da Yoko Ono, curadora da edição do festival.
Obrigada pela partilha, li uma crítica da performance no Süddeutsche Zeitung também bastante intrigada com a reação do público, deixo aqui para fazer companhia ao seu texto. https://www.sueddeutsche.de/kultur/yoko-ono-peaches-cut-piece-gropius-bau-berlin-li.3237267