Espiral: É possível viver mais devagar?
Repensando a maneira como nos relacionamos com o mundo e com o tempo
🪘 Trilha sonora para esta edição: Making Music, de Zakir Hussain, tablista indiano que tocou e gravou com George Harrison, Van Morrison, Yo-Yo Ma, Pharoah Sanders, Herbie Hancock e Charles Lloyd. Hussain faleceu no último dia 15 de dezembro.

A ida para a Índia surgiu num momento oportuno: eu precisava sair da minha zona de conforto, que nem boa estava, mas seguia quentinha. Sempre ouvimos que quem vai para a Índia, nunca volta a mesma pessoa. Fiz algumas viagens assim, mas foram poucas. Viagens que nos desnorteiam, levando-nos a reavaliar o modo como vivemos. No meu caso, a profecia se concretizou. Voltei virada do avesso.
Atordoada.
Começando pelos rituais muito presentes na cultura indiana, seja em grandes cidades como Mumbai, seja em uma cidade do interior, como Bhuj, onde estive para um casamento. Foi ali, imersa no dia a dia indiano, que me dei conta de como os rituais ajudam a criar um senso de pertencimento, mesmo em terras estrangeiras.
Foram duas experiências que marcaram bastante a minha estadia na Índia. A primeira foi o casamento hindu que me fez pensar como, em pleno século vinte e um, é possível manter tradições tão antigas e complexas em pé.
Passamos dois dias, que antecedem a cerimônia, assistindo rituais feitos com o noivo, todos eles conduzidos pelas mulheres da família. Fui envolvida em vários deles, incluindo a famosa aplicação de hena nas mãos, acompanhada de muita música e dança. Passei uma hora sentada em uma roda cheia de mulheres, com as mãos estendidas, assistindo às palmas serem coloridas com mandalas e as pontas dos dedos pintadas por inteiro. Foi quase um mês para desaparecer qualquer resquício de hena das minhas mãos.

Mas não é sobre o casamento que quero falar hoje. Vou deixá-lo para uma outra edição, pois é uma história tão bonita, especial e rica de detalhes, que merece espaço só para ela.
O segundo ritual que me comoveu foi o Aarti, a cerimônia da luz, que acontece todos os dias em templos hindus, margens de rios sagrados, e até mesmo em casa. Em Udaipur, éramos despertados diariamente no fim da madrugada por mantras ecoando de alto-falantes espalhados pela cidade, enquanto, no fim da tarde, assistíamos a esse ritual marcado pelos sons intensos de tambores, acompanhados de mantras nos templos da cidade.
A cerimônia mais bonita de todas, porém, assisti às margens do Rio Ganges, em Rishikesh, a capital da yoga para onde fui participar de um retiro. Lá, testemunhei dois Aarti grandiosos e concorridos: um no Parmarth Niketan, mais bem organizado e frequentado por estrangeiros e praticantes de yoga (abaixo vídeo da cerimônia que assisti), e outro no Triveni Ghat, mais vibrante, caótico e popular, é frequentado mais por indianos peregrinos e locais - este último foi o mais impressionante que experimentei.
O Triveni Ghat é emoldurado por uma deslumbrante cadeia de montanhas ao fundo. Quando o sol começa a descer no horizonte e o céu ganha tons rosados, os monges iniciam uma espécie de dança sincronizada, segurando lamparinas com altas chamas de fogo. Ao fundo, o Rio Ganges, de água verde e cristalina, corre veloz, assumindo o papel de um dos protagonistas do espetáculo. A energia é extraordinária. O tempo fica suspenso enquanto os tambores intensificam suas batidas, os mantras ecoam e a luz do fogo ilumina o rio.
Quando a escuridão se deita sob o céu ainda rosado, o espetáculo dos monges chega ao fim. Os músicos aos fundos intensificam então o ritmo das batidas deixando o ambiente mais vibrante. Subimos para a plataforma onde eles estão e nos juntamos dançando a batendo palmas. Os monges percorrem o público para arrecadar doações com suas lamparinas, convidando-nos a passar as mãos sobre o fogo e, em seguida, sobre o rosto — um gesto que simboliza a recepção da energia divina e das bênçãos por meio da luz. Saio de lá com um traço cinza pintado verticalmente no espaço entre as minhas sobrancelhas. Era minha última noite na Índia, e senti o desejo de prolongar a estadia. Chorei todo o ano de 2024 naquele palco, cercada por desconhecidos que sorriam e dançavam comigo.
Não me lembro da última vez em que presenciei uma catarse coletiva como a daquele dia. Tenho apenas observado nossos rituais do cotidiano se esvaziarem de significado até desaparecerem. Até mesmo nos festivais de música, a catarse de outrora foi sequestrada pelas telas dos celulares.
Byung-Chul Han, em seu livro "O desaparecimento dos rituais," afirma:
Os rituais transformam o estar no mundo em estar em casa. Eles tornam o mundo um lugar confiável. São no tempo o que uma casa é no espaço. Tornam o tempo habitável.
Para Han, os rituais não têm um propósito utilitário direto, mas são essenciais para formar vínculos coletivos e sustentar o tecido social. Criam um “tempo diferente”, uma pausa que escapa da lógica da produtividade e da aceleração da vida moderna.
Como voltar da Índia sem ser impactada pela beleza que, de tão escondida no meio do caos, pede atenção e presença para enxergamos um país capaz de nos deslumbrar?
Voltei de lá repensando nossa relação com o tempo num mundo onde estamos sempre correndo. Em meio a uma crise com a ‘Espiral’, percebi na minha inquietação uma oportunidade de recomeçar com uma nova proposta. A última edição já reflete um pouco desse caminho que quero seguir.
Quero explorar este ano o movimento ‘devagar’ para aprender a ser mais presente e tranquila. Viver com calma.
No dia dois de janeiro, tomando café da manhã numa cabana saída de um conto de fadas na Noruega, minha amiga rolava a tela do celular. De repente, ela perguntou: “Você acha que devo checar meus e-mails de trabalho para ver se está tudo bem?” Perguntei de volta: “Você está de férias?” “Sim.” “Então, não olha. Continue de férias.”
É sobre isso. Exigimos produzir até no descanso.
Por que estamos sempre correndo? Por que nunca temos tempo — e ainda nos orgulhamos disso?
Lendo sobre o tema ‘desacelerar’, caí no Martin Heidegger e sua visão sobre a técnica moderna e o pensamento meditativo. Para ele, a técnica moderna transforma tudo em recurso: a floresta vira madeira, o humano vira ferramenta. Vivemos para produzir e nos tornamos reféns do pensamento 'calculador', sempre buscando controlar e otimizar. Em contraste, o pensamento meditativo exige calma e contemplação. Busca compreender o sentido profundo das coisas e nossa relação com o ser, permitindo uma existência mais autêntica (e bem vivida??) sem a pressão constante por produtividade. Parece difícil, né?
Desacelerar não é rejeitar a tecnologia ou o progresso, mas usá-los com mais consciência e propósito. Não é fazer menos, é fazer melhor. É desacelerar para estar (e ser) no mundo, não apenas passar por ele.
Gostei muito do texto "Anatomia da Subversão", da Bia Montenegro, em que ela diz: "A verdadeira subversão considera não só novas imagens ou discursos, mas como repensar as relações desde a estrutura. Em uma realidade que prioriza tanto o eu, eu, eu individual, subversivo é comunidade. Em um mundo fóbico para qualquer inconveniente, subversivo é seguir um ritmo humano. Em um mundo online, subversivo acontece fora da tela."
O tempo não é linear, uniforme ou absoluto. Ele é múltiplo, subjetivo e político. Em 2025, convido vocês a explorarem comigo essas múltiplas temporalidades, a questionar o nosso ritmo insano e descobrir o nosso próprio tempo.
Porque talvez, só talvez, a verdadeira resistência no mundo atual seja a coragem de ir mais devagar. Resistir não precisa ser algo grandioso - pode ser algo tão simples quanto escolher viver no nosso ritmo. No nosso tempo. Afinal, nada é mais anticapitalista do que viver devagar.
Faz um mês que deletei o Instagram do celular. Passei metade da viagem na Índia sem compartilhar toda a lindeza que estava vivendo. Depois, fui esquiar e só pegava o celular quando queria saber onde meus amigos estavam. Assisti a uma tempestade de aurora boreal sem o celular nas mãos. Há um estranhamento, porque, nos últimos anos, talvez eu tenha compartilhado mais do que vivido de fato as experiências que compartilhava.
Não enxergo isso como um detox digital, porque já não acredito mais que ele seja possível, mas quero, como muita gente, encontrar um equilíbrio no meu dia a dia, incluindo a sonhada redução de tempo de tela. Embora, com a recente decisão do Mark Zuckerberg de não moderar mais mensagens em suas plataformas, além de suas falas equivocadas, a vontade de deletar tudo que seja da Meta só aumente - já que o TikTok eu uso moderadamente.
Opa, quase fugi do assunto.
Voltando…
… quero me desafiar a aprender a criar momentos de ócio. Ter pausas. Desde que deletei o Instagram do celular, meu consumo da telinha caiu em 40%. Quero também equilibrar minha relação com o WhatsApp, o qual discutimos menos a respeito, mas somos tão viciados nele quanto somos nas mídias sociais.
Um feliz 2025! Por uma vida mais humana, calma, gentil, amorosa e generosa. Com um pouco de tempo livre para fazer absolutamente nada.
O tema “desacelerar” já estava anotado no meu caderninho em novembro quando me deparei com tantos textos sobre a grande exaustão que todos estamos sentindo e a urgência que se tornou encontrar uma nova maneira de viver e de estar no mundo. Por isso, levei para as férias o livro “Devagar, como o movimento mundial está desafiando o culto da velocidade”, de Carl Honoré. Vejo o assunto como um ótimo guarda-chuva para permear o conteúdo que produzo aqui, por isso criei um plano editorial a partir dele.
A ideia não é ser monotemática, mas me desafiar a viver com mais calma e deixar que esse exercício se traduza no que escrevo.
Voltarei com a coluna “Amigas Geniais”, mas em formato diferente do antigo, e com os “Melhores do Mês” com foco em dicas que exigem calma para serem exploradas. E, não dá para deixar de lado nossa ansiedade climática, então quero compartilhar iniciativas sustentáveis que fazem diferença.
Agradeço a todos que me acompanham por aqui e espero seguirmos juntos mais um ano.
📚 Para viajar um pouco para a Índia

Três livros me causaram um comichão para viajar para a Índia na época em que os li. Apenas adiei a ida por alguns anos.
Em 2017, li "Jeff em Veneza, morte em Varanasi", do Geoff Dyer, livro que me marcou bastante por conta de seu desfecho. Plot twist do tipo que faz a gente gritar “QUÊ?”. Assim que voltei da Índia, decidi reler para buscar pistas sobre o que estava sentindo.
Na segunda parte do livro, o protagonista viaja para Varanasi, a cidade mais sagrada do hinduísmo da Índia, a fim de escrever uma matéria. Com ele, mergulhamos na intensa espiritualidade de Varanasi, cuja atmosfera religiosa e caótica a torna quase um personagem por si só. O narrador-protagonista - sem nome, mas presumivelmente o Jeff de Veneza - relata suas experiências com humor ácido e, por vezes, intragável. Enquanto sua narrativa personifica Varanasi, acompanhamos a gradual dissolução de sua identidade até tornar-se irreconhecível. O que aconteceu com ele?
Relê-lo agora me trouxe outro sentimento, além de entender um pouco melhor o que a Índia causou em mim (e o que causa em tanta gente).
Também revisitei minhas anotações sobre "Karmatopia", de Karla Monteiro, o segundo livro que me fez considerar conhecer a Índia. Nele, a autora percorre dez mil quilômetros pelo país durante cento e noventa e cinco dias, tentando entender a fascinação ocidental pela espiritualidade. É esse questionamento que a leva a explorar a Índia em busca dos maiores gurus, na tentativa de encontrar respostas. E nomes não faltam em suas entrevistas: de Prem Baba a Bobby Mescalina e a uma inglesa que diz ter passado catorze anos numa caverna no Himalaia sem dormir.
Eu não acredito em falta de tempo. Eu acredito em desperdício de tempo. Quando as pessoas dizem "eu não tenho tempo", estão falando o idioma da fuga, do escape. O tempo físico existe. Não existe o tempo mental, o que é muito diferente. A falta de tempo é algo psicológico. Está na mente, na incapacidade da contemplação. Isso é tudo que eu tenho a dizer. Não tenho paciência para a frase "eu não tenho tempo". - Iyengar sobre o tempo - Karmatopia.
No mesmo ano - diga-se de passagem eu estava obcecada pela Índia -, li "Nove Vidas", de William Dalrymple, que apresenta histórias de personagens extraordinários, como um cantor épico, uma prostituta e uma monja jainista, para nos oferecer uma visão única e profunda da Índia. São pessoas cujas vidas estão profundamente entrelaçadas com a cultura e a espiritualidade do país.
I Look for You
💊 Burlar o tempo mordiscando um Rivotril.
📺 Avicii - I’m Tim (2024) - documentário comovente e bem produzido sobre a trajetória do sueco que foi o maior DJ de sua geração. Não gosto da música, mas não nego sua genialidade musical.
✨ Assistir ao documentário sobre Avicii me fez refletir sobre quando alcançamos o que consideramos o auge profissional: o que vem depois? A reflexão me lembrou da decisão da artista Tabita Rezaire em encerrar uma carreira de sucesso como artista visual para se dedicar à vida de fazendeira na Guiana Francesa, onde fundou o centro AMAKABA, que combina arte, ciência e astronomia com filosofia ancestral. Ela vê a transição como um ciclo natural de morte e renascimento. Detalhe: Rezaire tem 36 anos.
Aproveito para informar que fico em São Paulo até meados de fevereiro. Aceito convites para café e conversa olho-no-olho. Quero aproveitar o momento para apresentar o meu projeto Senda, tanto para empresas quanto para pessoas. Quem tem planos de visitar Berlim este ano, me dê um alô também.
Amei suas reflexões dessa edição. Venho na busca dessa velocidade reduzida, aprender a viver "no meu tempo" e morar em Portugal tem me ajudado nesse caminho! :)
Amei a edição. Eu bati no limite no final de 2024 e estou neste momento de reorganizar a vida para ter mais leveza. Quero muito te encontrar, vamos marcar!