Espiral #57: Estamos vivendo fora do tempo?
O passado, o presente e o futuro, as eleições e o que tem me ajudado a ficar bem por aqui
Playlist para esta newsletter: Cool it Down, do YYY, que não sai do repeat
O problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser. - Paul Valéry
Comecei a trabalhar aos 14 anos e nunca mais parei. Emendei um emprego no outro até 2007, quando decidi empreender pela primeira vez. Foi um caminho sem volta mesmo com todas as dificuldades de ser empreendedora no Brasil. Ou seja, há 14 anos eu não tenho um emprego formal e não sinto falta dele mesmo que empreender tenha me feito trabalhar muito mais que outrora.
Não foi o dinheiro que me levou a empreender, mas porque vi uma oportunidade de fazer algo novo. A Social Media começava a florescer e não havia nada interessante sendo feito no mercado. Juntei minha pretensão, um pouco de conhecimento, uma amiga e a coragem para abrir o meu primeiro negócio.
Claro que eu não estava preparada para o que viria pela frente, mas me joguei de corpo e alma. Foi uma experiência muito bonita em que aprendi tudo na raça. Várias vezes eu pensei que, se eu pudesse voltar no tempo, eu teria feito algumas coisas diferentes, mas o próprio tempo nos prova que a vida só se desenrola da forma como se desenrola por conta das nossas escolhas. Se o fim justifica os meios, eu estou feliz com o caminho que se abriu após eu abandonar esse meu primeiro barco construído à base de noites mal-dormidas, alegrias, estresse, sucesso, reconhecimento, dinheiro e falta dele.
Ter que recomeçar abriu um novo mundo de oportunidades. Se moro atualmente em Berlim é porque esse caminho aberto há 7 anos me trouxe até aqui e isso faz todas as escolhas feitas valerem a pena.
Quando a pandemia começou, eu fiquei sem trabalho pela primeira vez na vida, já que o mundo era o meu escritório. Estar com tempo livre, foi o que me fez criar a Espiral, pois assim eu ocuparia as horas do “meu expediente” e teria uma tarefa fixa para executar. Me dei conta de que ainda sigo o velho modelo industrial trabalhando no “horário comercial”.
Quando a vida voltou ao normal, eu cogitei pará-la, pois a via como um passatempo. A pandemia me permitiu ser vulnerável em público, pois estávamos todos fragilizados com a falta de perspectiva do futuro. A newsletter foi uma das coisas que me salvaram durante a quarentena, pois me manteve ocupada o tempo todo em busca de conteúdo e, de quebra, aprendendo coisas novas e treinando meu olhar mais analítico.
Este último verão me jogou pela primeira vez num lugar ensolarado onde eu apenas queria estar perto da natureza e com os amigos. O computador foi aberto poucas vezes como nunca aconteceu desde que meu desktop virou laptop. Fiz algo que eu não lembro ter feito nos últimos 15 anos: Curtir as horas vagas por falta de trabalho sem culpa, pois praticamente só a Espiral seguiu como “tarefa” no período.
Passei a vida toda ocupada entre trabalho, projetos pessoais e eventos sociais. Não fazer nada só me era permitido na hora de dormir. Então decidi entender como é ter tempo para fazer o que eu quero sem me sentir culpada? Por que tudo que fazemos precisa ser considerado “produtivo”?
Eu passo o dia todo na frente do laptop “trabalhando”, mesmo quando não tenho trabalho a fazer. Começo textos, leio exaustivamente um artigo atrás do outro, zapeio as redes sociais, faço reuniões, algumas imaginárias, começo cursos, leio newsletters, respondo emails, escrevo outros e converso no WhatsApp. O dia passa e o fim dele chega com uma sensação de vazio porque a impressão é de que eu não fiz absolutamente nada, apenas me enrolei inventando tarefas. Quando bate 6 da tarde no relógio, eu fecho o computador e me sinto livre para curtir o dia lá fora. Faz algum sentido? Nenhum.
Eu queria sair para bater perna, ir ao cinema ou assistir série no meio da tarde, visitar exposições durante a semana, pedalar a esmo, ler meus livros sem ser na hora de dormir, mas geralmente não consigo. Fico presa no laptop como se ele fosse o meu chefe. No fim das contas, o meu desempenho é insatisfatório nas coisas que preciso realmente fazer, justamente porque me ocupo tanto para ocupar meu tempo, que não sobra tempo adequado para fazer as coisas que precisam ser feitas. O tempo mingua e fico dessincronizada com ele. As 8 horas do meu “horário comercial” parecem ter durado apenas 2. E as outras 6? Cade? Por que eu mantenho essa rotina de ter que estar 8 horas olhando para a minha tela de 13 polegadas? Porque não é fácil para nós mulheres nos permitir ter tempo livre.
O podcast “vibes em análise” fez um episódio muito maravilhoso sobre o tempo que me inspirou a escrever este texto. Nele, os autores discorrem sobre o presente extremo, ideia cunhada por Shumon Basar, que “é o que acontece quando o futuro não está distante no horizonte, mas é algo que já está comprimido no agora.” Quando nos damos conta, o futuro passou.
Durante a quarentena eu mergulhei nas ideias de Byung-Chul-Han que, com seu livro “A Sociedade do Cansaço”, me trouxe bastante clareza sobre a nossa relação tóxica com o nosso ser produtivo. Achei que eu tinha aprendido um pouco, mas não aprendi muito. A diferença entre antes da pandemia e agora é que, antes dela eu só não estava trabalhando quando estava dormindo, mas agora eu tenho um relógio de ponto imaginário que faz o meu “expediente” se encerrar junto com o do Ola que, de fato, tem uma carga horária para cumprir. Eu sigo sofrendo de dislexia temporal.
“desaprendemos a descansar? descansar seria um tempo morto? o filósofo Bergson fala do conceito de Vivências Automáticas: uma espécie de transe em que o tempo está morto porque não produz qualquer modificação duradoura no psiquismo. é como ir de nenhum lugar a lugar algum, e assim só perdemos tempo… e ficamos cansados, mesmo sem nos mover.” - float vibes
Morar em Berlim me trouxe de volta uma das coisas que eu mais temia, a rotina. Porém, eu me dei conta de que hoje eu gosto dela. Sempre associei a rotina à monotonia, mas não necessariamente elas estão conectadas. A minha rotina não é a ideal pois eu me enterrei no “presente extremo” que me impede de olhar para o futuro. Neste episódio “Fora do Tempo”, eu ouvi uma frase ótima do Paul Valéry sobre como a gente entra no futuro de costas, por isso talvez não sabemos para onde estamos indo.
Escrever, no fim das contas, é o que coloca uma lupa nas minhas verdades, mesmo as mais vergonhosas. Enquanto eu escrevia essa newsletter eu me vi de volta ao ninho quentinho que criei em casa durante a pandemia. Por isso segue difícil sair dele, porque é confortável, é seguro e me mantém longe do futuro para onde, talvez, eu não esteja querendo olhar, porque quanto mais eu olhar para o futuro, eu viverei melhor o meu presente. Mas estou presa no aqui agora.
Ontem, enquanto escrevia este texto, eu percebi que tenho deixado a poeira da monotonia se abater na minha rotina. Chacoalhei o mal-humor que tomou conta de mim esta semana e fui para a rua no meio do dia sem levar a culpa para passear comigo. Almocei com uma amiga, visitei duas exposições, fiz uma reunião que eu tinha do jardim de um museu e depois segui para duas outras reuniões, uma delas no jardim de uma caixa d’água para ver o pôr-do-sol, e terminei jantando com duas amigas no centro da cidade. Ter me permitido viver esse cadinho de coisas me fez querer ter de volta o amanhã, o qual eu andei evitando. Quero meu futuro de volta.
You want it darker
O resultado das eleições brasileira no domingo me deixou estraçalhada, mas me mantenho aqui tentando ser otimista. Por isso faltou inspiração para me debruçar melhor no conteúdo que consumi nos últimos dias, pois basicamente fiquei scrollando infinitamente os grupos no WhatsApp e do Twitter atrás de esperança:
Esta entrevista com o cientista político Jairo Nicolau me deixou ainda mais preocupada com o avanço da extrema-direita no Brasil, mas precisamos encarar os fatos para tentar entender o que nos trouxe até aqui.
Gostei bastante da análise do resultado das eleições do Andre Alves com a “Ressaca dos Ressentidos”, que ajudou a aumentar a minha lista de livros que quero ler, como o “Ressentimento”, de Maria Rita Kehl.
Brasil em bolhas: um estudo para criar pontes em um país que está deixando a conversa morrer.
Eu não sei você, mas eu quero tirar o Jair.
This is love
O Homeosteasislab está lançando uma série de cursos gratuitos na área de arte e tecnologia em português.
A Contagious liberou um guia para a Web3.
Como anda a inclusão digital brasileira? É o que responde o relatório “Conectividade significativa em comunidades brasileiras”.
Uma declaração de amor da Juliana Cunha à Annie Ernaux, que foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura de 2022. Seu livro “A Vergonha” acabou de ganhar tradução pela Editora Fósforo.
Um estudo sobre o futuro do design feito pela Float Vibes liberado gratuito.
Para me anestesiar um pouco em relação ao noticiário, eu maratonei “Garotas do Fundão” (Netflix) que, apesar do péssimo nome, é uma ótima série espanhola sobre amizade. E estou terminando “Bad Sisters”, na Apple TV, série dramática com um ótimo elenco que me lembrou “Big Little Liars”.
I’m not done
Mas afinal, o que é tempo?
O texto de hoje me fez lembrar do Byung-Chul-Han refutando a ideia de vida ativa de Hannah Arendt enquanto defende a vida contemplativa. Volto à mesma pergunta: como mulher é possível ter uma vida contemplativa? Eu ainda exergo isso como um privilégio masculino.
O tempo, as telas e o valor da sua atenção, por Beatriz Guarezi.
Viajei no papo delicioso da Gaía Passarelli com a Paula Carvalho, no episódio “Viajo porque preciso”, do podcast 451 MHz. Fiquei ansiosa para ler “Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt”, de Paula Carvalho, que conta a história “de uma viajante disfarçada do século 19 que trazem reflexões sobre identidade, gênero e liberdade”.
Visitei duas exposições distintas em Berlim que se complementam por explorarem a linguagem baseada em avatares, 3D e realidade virtual. “Counterfeit Poast”, de Jon Rafman, explora o potencial criativo das machines learning alterando imagens familiares que resultam em imagens delirantes e grotescas ocasionadas pelo Efeito Mandela.
Já “LuYang: DOKU Experience Center”, explora a ficção científica, o mangá, os games e o techno, através de uma reencarnação virtual chamada Doku, colocando o pós-humano num contexto das cosmologias budistas e hindus. O resultado é extraordinário. O vídeo principal está também na Bienal de Artes de Veneza.
O Halle, no Berghain, está com a exposição “Ian Cheng: Life after BOB”, que também questiona sobre o status da vida humana numa era de rápida inovação tecnológica.
Frequentar o Berghain afeta nossa sexualidade? Publicaram um estudo científico caprichado para responder à questão.
Quem gosta de unir arte e hospedagem, deixo uma bela opção na Alemanha e outra no Brasil.
Fofoca: A Anna Delvey foi libertada com a condição de se manter longe das redes sociais.
O Bruce Willis após ser diagnosticado com afasia, doença que pode fazê-lo perder a fala, vendeu o direito de sua imagem para uma empresa que pode usá-la através da tecnologia de deep fake. Ou seja, Willis é o primeiro ator a se tornar eterno. Não é mais tendência, já está rolando.
Gostei desse guia de como começar um laboratório de escrita em casa.
Quer estudar Lana Del Rey na universidade? A New York University tem o curso.
Fechando nostálgica.
Nos dias 5 e 6 de novembro vai rolar um evento totalmente dedicado às newsletters: O Texto e o Tempo, criado pela Vanessa Guedes, do Segredos em Órbita, com uma lista incrível de pessoas que hoje dedicam o tempo para as newsletters com bate-papos e oficinas. Eu participo da mesa “Como transformar ideias simples em textos geniais”. <3 Não tenho nem roupa para participar dessa converesa.
Caso esteja por Berlim e queira me encontrar na pista na próxima semana, eu estarei nos shows do Sigur Rós, uma das minhas bandas atuais favoritas, que lançará novo álbum no dia 28 de outubro; e do Max Cooper, com show da turnê “Unspoken Words”. Se sobrar pique (e dinheiro), na sexta-feira estarei no show da Lucrecia Dalt.
As imagens desta newsletter são da jovem artista britânica, de descendência nigeriana, Jadé Fadojutimi que me comoveu com a intensidade de suas obras.
Bom fim de semana. Volto na semana que vem com a minha amiga genial.
*Se você gosta de Iggy Pop, por favor clique no título da seção
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Eu tinha lido essa edição, fiquei de comentar, e esqueci (Mercúrio estava em retrógrado, o que não ajudou). Não é a primeira vez que estamos sincronizadas nos assuntos que abordamos, né? Tenho falado bastante sobre isso de encontrar o prazer e a diversão na rotina, e pra mim, são essas pequenas doses do que eu amo fazer, dentro do meu contexto diário, que me faz me sentir preenchida, inclusive na segunda-feira, que é tão temida por todos.
E saber que prazer não é luxo; prazer e descanso são nossas fontes de poder, questionando o inconsciente coletivo de que nosso prazer deve ser racionado e apenas explorado em horários apropriados, apenas depois de ser produtivo. Meu mantra do ano e da vida é "work and play now" e, não, "work now and play later". Talvez por isso às vezes me divirto mais no meio da semana do que no fim de semana.
Lalai, te ler é dos grandes prazeres do substack. saber que movimentou tanto por aí, é de fazer o tempo parar. obrigado e seguimos dentro e fora do tempo :)