Trilha sonora: “Profound Mysteries II”, Röyksopp
A deformidade do corpo não afeia uma bela alma, mas a formosura da alma reflete-se no corpo. - Sêneca
Eu fui muito magra a maior parte da minha vida e passei a adolescência morrendo de vergonha do meu corpo. Eu abusava de roupas que eram o dobro do meu tamanho para disfarçar a minha magreza enquanto eu sofria bullying por conta disso. Na época nem sabíamos do que se tratava esta tal perseguição e achávamos ela normal. Tábua de passar roupa, prancha de surf e Olívia Palito eram alguns dos meus apelidos.
Eu só fui tirar proveito das minhas pequenas curvas já na vida adulta, quando passei a deixar a barriga lisa à mostra, usar biquínis minúsculos, saias e vestidos curtos e calças bem apertadas. Mas, ainda assim, eu só saía de casa usando sutiã com bojos. Eu sonhava em entrar numa sala de cirurgia plástica para sair de lá com os peitos grandiosos. Para a minha sorte, isso não aconteceu.
O tempo foi deixando para trás a magreza que eu tinha passado a gostar. O excesso de trabalho somado à preguiça e à acomodação me mantiveram longe da academia. Certa vez, eu li que após os 40 anos a gente ganha um quilo por ano caso mantenha a mesma alimentação e se exima dos exercícios físicos. Meu metabolismo que era o próprio furacão 2000 começou a me deixar na mão.
Meu corpo começou a derreter por todos os lados enquanto eu ganhava uns quilos a mais que nunca tive. Voltei a me envergonhar do meu corpo. Passei a evitar praia ou piscina, mas quando não conseguia fugir, me rendia a um maiô bem europeu, ou seja, tapando bem a bundona que, de uma hora pra outra, ficou grande demais e a cinturinha que era de pilão deu lugar para a de ovo.
Vergonha pra cá, planos de me jogar na academia como se não houvesse amanhã para o meu corpo parar de desandar, vergonha pra lá, mudei para Berlim, a cidade onde a nudez é vista de forma natural.
Por aqui, o verão pode ser cruel pela falta de ar-condicionado em toda a cidade. Então o que nos resta é fugir para a água, seja para algum lago ou para as piscinas públicas, nos dias mais quentes. Lá fui eu, acompanhada com o meu maiô de corte europeu, esconder tudo o que dava para esconder. Com a desculpa “Não sei nadar”, eu nem me dava ao trabalho de levantar da canga, que eu acreditava proteger o meu corpo de julgamento alheio.
O tempo foi passando e com ele os panos foram caindo. Tudo começou no dia em que eu decidi voltar a usar biquíni. Escolhi um lindo de morrer, que comprei na Lenny, marca das cariocas chiques além da conta. Ele era praticamente um shortinho de tão grande. A parte de cima, um top bem comportado ao invés do habitual biquíni minúsculo de amarrar, daqueles que só tapam os mamilos. Sentia-me protegida e uma senhorinha muito chique nos lagos, onde à minha frente desfilavam corpos completamente nus. Deles e delas, jovens e velhos, gordos e magros, atléticos e caídos, peludos e lisos. Corpos de todos os tipos. Aos poucos eu fui me acostumando com eles.
É curioso como nós não sabemos muito como lidar com o corpo nu em público. No início, eu disfarçava atrás dos meus óculos escuros gigantes enquanto olhava pra cá e pra lá admirando o que eu achava ser uma ótima auto-estima. E, todo mundo olha sim (em especial quem não nasceu na Alemanha), mas por aqui é mais com olhar de curiosidade do que de sexualização. As pessoas não encaram, claro, mas deslizam os olhos curiosos pelos corpos que consideram bonitos. Às vezes ousam até a comentar com quem estiver ao lado.
Aos poucos, eu tomei coragem e troquei o biquíni anos 60 por um 2000 moderno. Pequeno, mas não tão minúsculo, de amarrar. Foi um progresso e tanto para mim. Lá estava eu, na piscina ou no lago, mostrando um corpo que não anda me agradando, mas que nada tenho feito para melhorá-lo. Ganhei até um bronzeado bonito made in Berlin.
Mas o progresso veio mesmo no dia em que eu abandonei a parte de cima. Eu já tinha feito isso num festival enquanto atravessava o deserto só de hot pants e coturno. Eu sabia que a sensação era libertadora, especialmente para alguém que passou a maior parte da vida escondendo os peitos pequenos atrás de bojos horrorosos e desconfortáveis, dos quais finalmente eu me livrei há alguns anos.
Com o tempo, foi tudo ficando mais simples. Mas eu me perguntava se eu teria a mesma coragem quando os amigos brasileiros estivessem por aqui me visitando, afinal, a gente tem uma idolatria pelo corpo e, para a maioria, ele precisa sempre estar perfeito. O dia chegou e eu, já acostumada com o topless, nem me dei conta desse detalhe. Esticamos a canga na grama e já fui tirando a camiseta ali mesmo. As amigas fizeram o mesmo.
Num dia desses, eu fui curtir os 33 graus na despedida de uma amiga num lago. Alguns estavam mais à vontade do que os outros, mas o lago em que estávamos é um dos que mais tem adeptos ao FKK por aqui, então era mais gente pelada do que mais ou menos vestida.
Como estávamos na sombra, eu fiquei com meu parzinho de biquíni florido, em cima e embaixo, até ir para a água, que estava convidativa e, sem sequer pensar, eu tirei tudo. Entrei nua na água gelada, que me recompensou com uma sensação de frescor maravilhosa. Dei até um gritinho e fiquei emocionada.
Voltei para o grupo com o biquíni na mão e só o vesti quando decidi sentar na canga. Nem me dei conta de que, o que sempre foi um tabu para mim, estava ali acontecendo de maneira despudorada. Lá estava eu peladona, com meu corpo fora de forma, sem qualquer pudor.
Logo caiu a ficha e ri de mim mesma, afinal por que raios é tão difícil assim se despir, não só das roupas, mas dos nossos preconceitos? Por que não conseguimos enxergar um corpo nu da mesma forma como o enxergamos vestido? Por que a forma do corpo alheio tanto nos importa? Por que a gente é tão cruel com a gente mesmo?
Eu gosto bastante dessa relação que os alemães têm com a nudez. Eu percebi que, aos poucos, morar em Berlim me faz aceitar melhor quem eu sou e como sou. Tenho vários paradigmas para quebrar, mas esse foi bem importante. Quebrá-lo me fez fazer as pazes com o meu corpo e me levou de volta para a academia. E você, como anda com a nudez em público?
Oh, Lover
Uma das coisas mais bonitas que vi essa semana foi “A love letter to Fiona Apple from Evan Rachel Wood and Angela Trimbur”.
Às vezes precisamos estar fora para olhar para dentro. Eu passei a prestar muito mais atenção na cena musical brasileira depois que saí do Brasil. Eu me deliciei com essa lista dos 10 funks essenciais produzidos pela galera de São Paulo. Para quem curte um baile funk, Londres e Berlim tem um para chamar de seu.
Passou a minha ressaca que estava dos NFTs e voltei a mergulhar nas leituras e discussões acerca da Web3. Na empolgação, eu acabei retomando a newsletter da Mentaland, em que a reestreia fala sobre o impacto da internet descentralizada na indústria da música.
Chega logo setembro!!!!! Estou roendo as unhas de ansiedade para assistir “Moonage daydream”, documentário sobre o brilhante David Bowie, que era fascinado pelo Japão (e quem não é?).
Last Chance
Falso ou verdadeiro? Cerca de 11% das pessoas que moram em Berlim comem dönner todos os dias, quando no meu caso eu só como quando estou de ressaca. Já o excesso de festas e drogas afetam mais os visitantes do que quem mora aqui.
“Prestes a chegar aos 50, quero que a vida vibre - forte e bela, doce e contraditória, com desejo, paixão e algum arrebatamento que não me tire tanto assim do sério”. Eu queria ter escrito essa frase, mas ela é do Leonardo Sarmatz e está no seu ótimo texto “O fim das coisas”.
Desistir não é possível: “Se desistir da existência é por demais trágico e estar presa numa existência sem luta é inviável. Em outras palavras, se não podemos realmente desistir, igualmente não parece possível se resignar.” - Marina Colerato
Terminei de ler “Léxico Familiar”, da Natalia Ginzburg, e ainda estou digerindo o efeito que causou sobre mim. Não foi uma leitura rápida, tanto que intercalei com outras leituras, mas a lentidão não teve a ver com o fato da leitura não decolar. Ao contrário, ela me cativou desde o início com a sua escrita, a primeira dela que leio, tão íntima e, ao mesmo tempo, tão distanciada dela mesmo. Uma narrativa diferente das que eu tenho consumido até então. “Léxico Familiar” conta a história de sua família durante o pré-durante-pós Guerra vivido na Itália contada de maneira simples e genial.
Para quem gosta de olhar um pouco pro futuro, o Aerolito publicou um relatório com os “20 objetos do amanhã brasileiros”, nas áreas tecnologia, ciência e negócios. Achei só uma falha na revisão marketplace Hic Et Nunc, que foi tirado do ar há algum tempo, mas ainda assim há diversos bons exemplos de negócios que estão apontando o futuro e a reflexão acerca dele continua válida.
Às vezes eu acho que só eu não me rendi ao TikTok, mas confesso que eu fujo da plataforma para não passar a morar nela. Ler um texto como esse “Por que amamos audio memes no TikToK?” (em inglês), faz eu ter a certeza que é melhor eu me manter longe enquanto for possível.
Para quem vier passear em Berlim, deixo aqui a dica dessa plataforma que tem feito eu querer fazer diversos passeios.
Lalai, que bonito! Este texto me bateu como a tradução do que é cultura e como os corpos e a beleza se manifestam em cada lugar. Adorei. Também Léxico recentemente, bem devagar, e que obra! <3
Ainda não consegui me aproveitar do FKK em Munique, onde moro, mesmo sendo tão entusiasta da nudez. Já passei por "praias de rio" por aqui com gente nadando, peladona, mas algo ainda me impede de ir lá e participar. Talvez me falte companhia pra tal? Ou uma primeira vez inaugural? Bem, veremos conforme o tempo passa. Outra coisa curiosa a ver com nudez é o comentário que rola as vezes no trabalho: "no inverno iremos à sauna", dizem. Fico pensando como vai ser ir à sauna — todos peladões, como é de praxe aqui — com a galera do trabalho. Pai celestial, oremos.