Espiral #104: Diário de uma pseudo esquiadora
Notícias do norte do planeta: Ela segue bem e andando.
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Essa edição é extra porque deu vontade de escrever. Não tem dicas extras e nem links para outras leituras. É apenas uma reprodução do meu diário. Aproveito para desejar um Feliz Ano Novo e que 2024 seja um ano mais gentil para todos.
Trilha sonora para essa newsletter: "Eurocentrismo", uma playlist com uma bela seleção de música brasileira.
Pensei ter superado o medo de esquiar, só para descobrir no dia seguinte que a conquista de confiança era uma ilusão. As pistas que saem do topo da montanha estavam todas com acesso fechado devido à ventania que levantava uma quantidade tão grande de neve do chão que era possível avistar essa 'poeira' a um quilômetro de distância.
As opções eram dirigir para o outro lado da montanha e esquiar pistas que começam algumas dezenas de metros abaixo do topo ou descer o que restava da montanha para nós, circundando a metade dela até alcançar o outro lado, onde estão as minhas pistas favoritas. A segunda alternativa foi a escolhida. Eu topei. Estava convencida de que as pistas que nos levariam até lá seriam fichinha para o meu atual status de esquiadora intermediária, mas mal sabia o que me aguardava pela frente.
No fim das contas, me senti descendo a Serra do Mar em plena sexta-feira no fim da tarde com tráfego intenso. Ao lado, um pequeno precipício cheio de árvores cobertas de neve, e do outro lado, um 'acostamento', onde motoristas abusados atravessam de maneira despreocupada mesmo sendo proibido cortar pela direita. A pista é estreita, diga-se de passagem, e cheia de curvas, algumas bem fechadas. Nada me assusta mais do que uma pista estreita em constante declive com um precipício à espreita. Não tinha como voltar atrás. Eu teria que descer. Respirei fundo e fiz uma boa saída.
Num passado distante, precisei descer essa mesma pista abraçada ao meu marido para conseguir sair do lugar. Foi humilhante. Dessa vez eu não cogitava repetir a cena. Deslizei pela neve macia sozinha em ziguezague. Alguns trechos eram mais tensos com curvas fechadas e muita neve acumulada formando montinhos desorganizados. Além disso tudo, muitas pessoas passavam esquiando a toda velocidade nas minhas laterais, o que começou a me deixar ansiosa. Tentei não apelar para a cunha, quando deixamos os esquis em V virados para dentro, o que deixa meus joelhos esgarçados. Essa era uma fase que tinha ficado para trás.
Continuei a descer quase relaxada, parando em algumas curvas para retomar o fôlego, até que, em algum momento, alguém voou no ar pelo 'acostamento', uma área mais alta ao meu lado direito. Eu me assustei e caí. Quando olhei para trás para me levantar, dei de cara com uma outra pessoa descendo de snowboard a mil em minha direção.
Me apavorei, pois não tinha quase espaço livre ao meu redor. Senti que ele partiria meu rosto ao meio caso não conseguisse se desviar. Colei a cara na neve e senti ele voando muito próximo de mim, quase encostando no meu corpo.
Ele só desviou bem porque, provavelmente, nasceu com os esquis nos pés e se vira muito bem com essa tábua larga colada neles. Mas, claro, poderia ter dado errado. Vi seus olhos se arregalarem1 ao me ver caída tão próxima na direção pela qual ele vinha. Os segundos que tinha para me alcançar não pareciam suficientes para ele mudar a direção. Quando finalmente passou por mim, o meu corpo tremia. Procurei o meu marido e dei de cara com ele pálido e de olhos arregalados2. Tive a certeza de que a coisa poderia ter sido feia mesmo.
Toda a desenvoltura que havia conquistado nos últimos dias desapareceu. Voltei várias casinhas nesse tabuleiro de jogo da montanha. No entanto, não tive escolha e precisei lançar novamente os dados para poder seguir em frente.
Não foi fácil. Porém, me surpreendi ao relaxar aos poucos no meio do caminho, mesmo com a cena de um terrível acidente que não aconteceu pairando na cabeça, mesmo com a pista estreita, mesmo com um esquiador vovô me xingando porque parei em algum momento sei lá porquê.
Quando cheguei no fim da pista, soltei um berro de alívio que ecoou pela montanha.
Levei algum tempo para me recompor, mas logo estávamos subindo alguns quilômetro de montanha acima num teleférico velho, espremida entre mais cinco pessoas, apenas para deslizar por todo esse pedaço de neve até chegar aos seus pés novamente. Em outros tempos, eu teria desistido tão logo tivesse chegado ao fim do caminho após o quase acidente. Mesmo sendo uma pessoa mais medrosa e consciente de tudo que pode acontecer enquanto esquio, tenho me revirado em busca de autoconfiança para continuar. Com o esqui tenho aprendido muito sobre superação.
A recompensa veio com pistas com neve ótima e muitos metros de largura para ziguezaguear tranquilamente montanha abaixo. Avancei várias casinhas no meu jogo, a confiança voltou, mesmo com alguns momentos de vertigem ao olhar para toda aquela descida branca e íngreme à minha frente. Desci meio congelada pelo frio, mas o medo ficou para trás. Caí duas vezes, mais pelo que restava do cansaço emocional do que por acidente.
Já no ponto de ônibus para voltar para casa, ganhei minha segunda recompensa: uma lua cor-de-rosa cheia e imensa subindo no horizonte.
Estou passando os últimos dias do ano dentro de um verdadeiro cartão postal de Natal. À minha frente, uma imensidão branca se estende até fundir-se com o céu, tornando-se uma coisa só. A montanha, onde passei dias deslizando na melhor neve que meus pés já experimentaram, simplesmente desapareceu. Sentada no sofá, com uma vista privilegiada da montanha, observo uma bela tempestade de neve. Um uivo forte percorre a casa, vindo de todos os cantos como se traduzisse o som do mundo. Tudo é belo, por vezes musical, por vezes imerso em um silêncio pós-apocalíptico.
Minha primeira visita à Trysil, na Noruega, foi em um verão em 2009. As casinhas salpicadas por todos os lados da montanha pareciam abandonadas, pois o que dá vida por aqui não são os dias ensolarados e quentes, mas sim os brancos e frios como agora.
Quando retornei no inverno meses depois, parecia outro lugar. A montanha, que na primeira vez eu avistei vazia e verde, dessa vez era branca coberta de chantilly, lotada de gente vestindo roupas coloridas impermeáveis como astronautas, capacetes, óculos cobrindo metade da cara e calçando botas esquisitas presas em longos pedaços lisos de madeira. Um alvoroço só, com gente indo e vindo pra lá e pra cá. Crianças muito pequenas, com esquis da altura delas, deslizando sozinhas montanha abaixo como se tivessem nascido com eles acoplados nos pés. Parto dolorido eu diria.
Se eu tivesse caído aqui vindo de outro planeta, a minha impressão do mundo seria muito diferente da que eu carrego comigo. Talvez um mundo mais seguro com uma boa dose de selvageria.
Quando coloquei os esquis nos pés pela primeira vez, eu caí na primeira tentativa que fiz para me locomover. Choraminguei: "E se eu cair e bater a cabeça? Como a minha perna não vai quebrar se eu cair com esse negócio gigante preso nos meus pés? Não consigo controlar a velocidade! Vocês estão todos loucos! Quero voltar pra casa pra ler meu livro!" E, assim, continuei caindo e levantando, reclamando, caindo e levantando, reclamando, caindo e levantando até quase não cair mais. Agora gostando, quase não reclamando.
Estou há anos vivendo a mesma história, com algumas temporadas de sucesso e outras querendo abandonar o que parece ser uma sessão de tortura. "Isso é prova de amor", eu brado para o meu marido, que não lembra de sua existência antes de ter tido os esquis nos pés e não consegue ver sua vida sem tê-los por perto.
O acidente imaginário me fez refletir sobre persistência. O esqui é um esporte para o qual eu nasci sem quase nenhum talento. Minha sogra, muito gentil e generosa, diz que sou corajosa por enfrentá-lo já na fase adulta. Ela, uma esquiadora habilidosa, conta que também começou tarde e compreende o quão difícil é. No entanto, ela começou uma década mais cedo do que eu. A diferença entre os 20 e poucos anos e os 30 e poucos anos é que, nessa última fase, carregamos uma mala cheia de medos com tudo parecendo ser uma ameaça de morte.
Penso nas semelhanças com tudo na nossa vida. Somos expostos o tempo todo às intempéries das mais diversas, mas precisamos encontrar forças para continuar quando somos abatidas por uma delas.
Li um livro recente e me deparei com essa frase da Clarice Lispector:
Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter a vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.
Quando estou relaxada, eu amo esquiar. A sensação de voar pela neve é sempre extraordinária. Sinto vocação para o esqui, mas o talento, ah, o talento, esse estou tendo que treinar duro para conquistar. Haja persistência e superação, juntinhas de mãos dadas. Nem sempre consigo dar conta, mas quando dou, a recompensa é sempre extraordinária.
🎿
Um dia desses eu estava sofrendo para sair de dentro das minhas botas novas de esqui, moldadas sob medida nos meus pés, lembrei-me de Natalia Ginzburg descrevendo seu horror com as botas velhas que usava. Em um dos meus livros favoritos da vida, "Léxico Familiar", Ginzburg fala sobre suas temporadas forçadas de esqui durante o inverno. Seu pai, assim como eu, aprendeu a esquiar na Noruega. Afeiçoou-se ao esqui a tal ponto que bastava cair um pouco de neve para ele seguir para Clavières, na França, com os esquis nos ombros e a família a tiracolo.
☃️
Tivemos uma semana com dias bonitos, mesmo sendo eles tão curtos. O sol nasce após as nove horas da manhã, e às duas e meia da tarde já está indo embora. No Natal, esquiei pela primeira vez à noite. Veja bem, eram três e meia da tarde, mas a escuridão já cobria tudo ao redor. É uma sensação constante de estar fora do tempo. Jantamos às cinco da tarde, porque parece ser oito horas, horário em que já estou pronta para ir para a cama ou para jantar de novo.
É um baita privilégio estar nesse cantinho particular com essa vista espetacular, talvez uma das mais bonitas que já tive.
Tenho aproveitado o tempo livre, que é muito, para ler, assistir filmes, fazer sauna, algo que aprendo a gostar aos poucos, aprender jogos escandinavos e dormir muitas horas seguidas.
Nos vemos em 2024!
Vi nada porque ele estava com aqueles óculos gigantes tampando a metade da cara
Idem acima. Nem a palidez foi possível porque o frio obrigou a gente a proteger a pele toda
você é minha heroína!
sou ruim em todas as modalidades de esportes de inverno, exceto o livro com chá quente. e de vez em quando, faço fotos das pessoas amadas deslizando mundo a fora.
parabéns pela coragem!
Já se passaram 14 anos daquela primeira vez e nós já devemos ter dado a volta ao mundo com esquis nos pés. Eu só tenho orgulho da sua persistência e do seu aprendizado. <3