🎧 Trilha sonora para esta newsletter: Hoje quero causar estranhamento sonoro, incomodar um pouco, por isso escolhi “Sphaîra”, da Sara Persico, para acompanhar a leitura. Achei que combina com o texto. Gravado no Teatro Experimental projetado por Oscar Niemeyer em Trípoli, Líbano, o álbum é uma escuta profunda de uma arquitetura utópica interrompida, onde a artista ativa a memória do espaço com voz, objetos e sons do ambiente.
Talvez o tema seja repetitivo, mas é que ando imersa numa Espiral. ꩜
O Vincenzo Latronico, autor de “As Perfeições”, participou esta semana de um evento em Berlim para falar sobre o seu livro, mas no perrengue da viagem de volta de São Paulo, perdi o timing e os ingressos já estavam esgotados. Só não fiquei mais chateada porque, no mesmo dia, apareceu um jantar guiado pela provocação: "Deveria o ChatGPT ser meu terapeuta?".
Saber que Latronico estaria na esquina de casa trouxe de volta o incômodo causado pelo seu livro. Já falei dele por aqui, mas para contextualizar: “As Perfeições” acompanha um jovem casal de millennials em busca de uma vida “autêntica”, que, na prática, se resume a aparência, repetição e um vazio existencial.
No bom português, o livro é também sobre crise estética, expressão que no Brasil viralizou1 e virou diagnóstico de época. Mas ela não é só nossa. A sensação de que tudo anda esteticamente correto, mas emocionalmente raso é global.
A tal crise estética vai além do mau gosto. É aquela sensação de que, em meio a tantos discursos e imagens recicladas, a gente não sabe mais o que é belo, o que nos toca ou é real. O filósofo Byung-Chul Han fala2 que vivemos uma era da superficialidade e da pressa, onde o belo, que precisa de tempo e silêncio para se revelar, anda em extinção.
Essa crise não está só na aparência das coisas, mas também nas relações e na política. A estética virou uma forma de se posicionar, quase sempre sem conteúdo por trás. O velho clichê: quase tudo é construído para agradar o algoritmo, inclusive o "autêntico" vem embalado em storytelling pronto.
Dias atrás, fui almoçar em um restaurante em Berlim, em uma avenida caótica e desprovida de charme, mas que chamava atenção pelo prédio novo: fachada de vidro, salão iluminado por luz natural e minimalismo escandinavo. A madeira clara dominava mesas e paredes, as plantas estavam todas estrategicamente posicionadas. Tudo parecia no lugar certo, mas algo me incomodou. Era como se eu já tivesse estado ali antes.
A visita foi a convite. Fui recebida pela PR que me contou toda a história: o designer-amigo, a madeira da mesma árvore (gigante, aparentemente), a horta nos fundos e equipamentos comprados de segunda mão. Tudo pareceu autêntico, mas não soube distinguir se era de fato ou se tudo foi feito para parecer assim. Mas quem decide o que é autêntico hoje em dia? Por que, mesmo diante do que parece verdadeiro, sentimos falta de algo que nem sabemos nomear?
Essa crise não é nova, mas está em fase avançada. Tudo está meio igual já faz tempo. Bonito, sim, mas previsível. Tudo virou embalagem, o conteúdo sumiu. E isso vale para tudo: comida, música, relações, política. A estética virou uma forma de pertencer. Mas quando o gosto é apenas rótulo, o diálogo desaparece. E aí, cada um fala sozinho dentro da sua bolha visual.
Talvez por isso a nostalgia esteja tão em alta. Entrou para os relatórios de tendências para não sair mais. Está também nas séries, na moda, na música, nos filtros, nas receitas de infância, na decoração. Em tempos de excesso de simulação, olhar para trás virou refúgio. Mesmo que seja um passado recriado e idealizado. Pelo menos ali acreditamos que algo foi real.
A cultura segue presa nesse looping nostálgico. O presente, saturado de cópias, perde cada vez mais a sua força. E se até um restaurante bem-intencionado carrega esse vazio, imagina o que acontece com a música - não consigo não pensar nela, que é uma das coisas que mais me move.
Hoje a música virou produto. Ouvimos como quem escuta trilha de elevador. O Spotify Wrapped revela faixas que nem lembramos de ter ouvido. O silêncio também se tornou produto - vide os listening bars pipocando por todos os cantos do mundo. As músicas são pensadas para viralizar no TikTok: dois minutos, refrão que cola e zero estranhamento.
Nos shows, o palco é cenário de selfie. As performances são desenhadas para caber numa tela vertical. A imagem é mais importante que a experiência. Estilos que nasceram da ruptura, como techno, punk e hip-hop, viraram estética. A transgressão virou look. "Aesthetic" como se chama hoje, não é mais sobre expressão, é sobre pertencimento (ah, to repetitiva, eu sei!).
Quando foi a última vez que você ouviu algo que causou estranhamento e você não pulou a faixa? O novo incomoda e a gente evita.
Essa saudade do que a música já foi diz muito mais sobre nós do que sobre a música em si. Fala sobre nossa relação com tudo que perdeu a potência de nos emocionar. E agora acompanhamos a inteligência artificial acelerando ainda mais esse processo.
Quanto mais previsíveis nos tornamos, mais fácil fica para a IA nos imitar. Se antes a arte servia para deslocar, hoje perguntamos para ela o que sentir. O senso crítico vai se dissolvendo, até sumir. Cada vez mais fica mais difícil saber o que é real e o que não é.
Talvez não seja uma nova crise, mas uma mutação da mesma. A imagem deixou de representar e passou a substituir. A IA aperfeiçoa tanto a simulação que sobra menos espaço para o real. Como diria Jean Baudrillard3, não vivemos mais o real, consumimos versões dele. A imagem virou protagonista e a experiência figurante.
Estamos vivendo uma crise da simulação? Pode ser. Quando a aparência parece melhor que a realidade, é sinal de que alguma coisa quebrou. E talvez por isso a nostalgia seja a linguagem do nosso tempo: porque, se tudo pode ser simulado, ao menos a memória ainda parece real.
Voltando àquela sensação no restaurante em Neukölln, entendi o incômodo. Mesmo com toda a narrativa bem contada, algo faltou. Sentimos saudade de algo que falta agora, mesmo que sequer tenha existido. Talvez porque vivemos algo que não nos disse absolutamente nada.
In transit 🎻
⏮ Neste relatório, a nostalgia aparece como resposta emocional a um presente caótico, uma forma de buscar conforto, conexão e sentido em tempos de excesso e incerteza.
✨ Esses dois ótimos relatórios falam de um jeito bem afiado sobre o colapso das instituições, a crise da estética e como a nostalgia virou nosso jeito preferido de sentir.
📚 Terminei de ler “A Insubmissa”, da Cristina Peri Rossi, romance autobiográfico que narra de maneira bem humorada a história da infância e começo de adolescência da escritora uruguaia. É um livro absurdamente lindo, daqueles para morar na cabeceira da cama.
🌎 Li e amei “Orbital”, da Samantha Harvey, uma bela meditação existencial sobre a fragilidade da vida, observada a partir do espaço, onde seis astronautas orbitam a Terra e contemplam a beleza, a violência e a impermanência da condição humana. É de uma beleza só também e que traz várias reflexões.
📺 Assistindo novamente “Twin Peaks”, do David Lynch, no MUBI. É pura nostalgia. A
escreveu uma edição inteira dedicada à série que está sensacional. Se você não assina o MUBI, acesse este link para obter um mês grátis.🍿 Assistindo e curtindo a segunda temporada de “Nove Desconhecidos”, com a fabulosa Nicole Kidman, na Amazon.
📩 Eu moro na Alemanha há quase 6 anos e morro de vergonha porque ainda não falo alemão, então me senti representada neste texto “Uma nova língua é como uma nova vida”.
📀 O novo álbum “Hymnal” da Lyra Pramuk mistura vozes experimentais e sons eletrônicos criando uma vibe bem espiritual e conectada com a natureza e o universo. Dê play, fecha os olhos e vai!
🤖 A IA deve eliminar 9 milhões de empregos até 2030, mas criará 11 milhões de novas funções, principalmente em áreas de confiança, integração criatividade humana, como auditor de IA e diretor de personalidade de IA - que não é muito diferente de quando definimos ‘tom de voz’ para uma marca.
🌟 Três newsletters, entre várias, que tenho gostado de acompanhar:
, , .Bom….. me voy nessa. ♡ Até a próxima e comenta (ou manda email) como anda a vida, se mais para real ou para simulação.
A frase “a crise é estética” surgiu no Twitter em 2016, postada por André Dahmer durante o impeachment da Dilma. Era uma reação à estética grotesca das manifestações, como o pato da Fiesp, e viralizou ao escancarar o mau gosto e a superficialidade visual daquele período.
Jean Baudrillard mostra que na hiper-realidade as imagens e simulacros substituem o real, criando uma realidade fabricada em que a experiência direta perde espaço para a representação. Consumimos versões do real, não o real em si.
totalmente Twin Peaks das ideias <3
Eu estava refletindo exatamente sobre isso ontem. As pessoas são muito boas em copiar estéticas e seguir o que está na moda, mas poucas são capazes de expressar algo genuíno e verdadeiro. Os tempos atuais deixam as pessoas ansiosas, com pressa — e isso é inimigo da conexão real com o nosso eu mais profundo. É também incompatível com o tempo e o tipo de atenção que as redes sociais exigem, gerando esse caos de superficialidades, disputa por atenção, ansiedade por corpos perfeitos, entre outras coisas, no qual acabamos desconectando de nós mesmos e reproduzindo o que os algoritmos demandam. Belíssimo texto, vou compartilhar. Obrigado!