Escolhi uma trilha sonora dançante para essa edição, um DJ da mama Stacey Hotwaxx Hale. Clica no play, porque você vai se sentir selvagem!
Comprei Dançando nas Ruas, da Barbara Ehrenreich, antes de me mudar para Berlim. Ele ficou me esperando na estante por alguns anos. Acho que tem livro que escolhe a hora certa de ser lido, e esse chegou quando eu estava prestes a pedir aposentadoria da vida social.
Ainda não cheguei na metade, mas ele já rendeu reflexões e conversas com amigos. Ehrenreich mostra como a dança coletiva sempre incomodou o poder (e os colonizadores). A história tentou enterrá-la chamando de selvageria, de primitivismo e de desordem. Talvez fosse mesmo, mas no melhor sentido. Dançar juntos era, e ainda é, uma ameaça à ordem, à disciplina e ao controle. Sufocaram o êxtase por medo da alegria em grupo.
Quando penso nos momentos mais felizes da minha vida, tem sempre música, suor e movimento. O meu, o de outras pessoas, todos meio entregues, sorrindo daquele jeito genuíno que só o prazer permite. Me vem eu dançando em alguma rua estreita de São Paulo acompanhando um bloco, requebrando o quadril, cantando com os braços para o alto como se o mundo pudesse acabar e eu morreria feliz. Lembro de pistas de festas onde eu me perdi completamente, seja em São Paulo, no Rio, em Barcelona ou Berlim. As memórias são muitas, algumas difusas, mas todas têm algo em comum: uma faísca de êxtase que reaparece só de pensar nelas. Já começo a mexer os ombrinhos só de lembrar.
Ehrenreich diz que dançar coletivamente é tão essencial quanto comer ou dormir. Mas nem precisa teoria para isso. Basta aquele momento em que o ritmo entra e a gente sorri para alguém desconhecido na pista. Pronto. Nasceu uma conexão. Não precisa sequer falar o mesmo idioma.

Tenho amizades que começaram assim. Até mesmo a grande história de amor que vivo há quinze anos nasceu em meio a um baile funk. Na pista, os dois suados, uma multidão em volta e uma catarse coletiva rolando.
Talvez eu só esteja arrumando desculpa para dançar até o joelho estalar, mas se for isso, tudo bem também. Agora eu só penso em dançar. Mas o problema é que gente vibrando junto, sem alguém mandando e sem roteiro, soa perigoso. É coletivo demais, é bagunça. Por isso, empurram a dança coletiva e pública cada vez mais para longe das ruas e até mesmo dos clubs. É só pensar no quanto o carnaval em São Paulo sofre para sobreviver gigante na rua.
Desde que o mundo começou a ser colonizado, acharam dançar um ato selvagem a ponto de trabalharem para que a dança fosse apenas performance. Algo para assistir. Pagamos para ver os outros sentirem o que esquecemos como se sente.
Mas sempre tem quem escape. Desde os anos 80, as raves e as pistas de techno ressuscitaram esse êxtase perdido. Acid house em Chicago, Manchester e Londres, o techno de Detroit e Berlim dos anos 90, os soundsystems da Jamaica: todos descobriram que repetir a mesma batida por horas muda alguma coisa por dentro. A dança vira língua, ritual, fuga e conexão ao mesmo tempo. O techno, por exemplo, foi capaz de unir as Alemanhas, criando pontes onde antes havia muro.
As festas queer, os espaços independentes, os clubs escondidos ou festas ocupando espaços abandonados sabem bem disso. Neles, o som resolve. Ninguém precisa explicar nada. Não importa de onde a gente vem, a conexão é mais rápida que qualquer conversa. E, ali, o nosso corpo e nem a nossa alegria não precisam pedir desculpas por existir.
Talvez, o que chamamos de subcultura pode ser, na verdade, a continuação de tradições muito antigas de rituais coletivos.
Um mundo sem pista é um mundo que trocou prazer por produtividade. Quando fecham os espaços, baixam o volume, matam a noite, estão apagando a nossa capacidade de viver em comunidade. Sem lugar para o transe, sobram só as telas, o burnout e o isolamento. A festa acaba e o corpo encolhe.
Durante a pandemia, eu tirava os móveis do meio da sala e dançava sozinha para lembrar que eu ainda existia e que meu corpo ainda podia vibrar. Talvez por isso tantas festas online fizeram sucesso na época. Mesmo pela tela, a gente precisava dessa memória e experiência compartilhadas.
Quando a gente dança junto, a gente devolve o corpo para si e se conecta com o outro. A pista não exige nada. Ali, dá para ser tudo ou nada. Dá até para desaparecer no som se quiser.
Dançar é uma forma de recusa, desobediência e liberdade encarnada. Por isso, dançar junto é resistir. Não na teoria, mas na prática. É anticapitalista na raiz.
Tenho memórias em fotos e outras que vivem só no corpo. São elas que revisito quando a esperança some e o futuro soa distante. Penso nas vezes em que dancei na madrugada nas ruas de São Paulo, em lugares onde, durante o dia, não costumo me sentir segura. Quando o poder permite, qualquer chão ou rua vira pista. Mas ele precisa querer.
Outro dia, conversando com um amigo, disse que quando não estou dando conta da vida, eu preciso fugir para a natureza ou para uma festa. Eu preciso desconectar ou dançar. Nos dois lugares, eu respiro mais fundo, mas na festa, eu me reconecto com o outro. Relembro a possibilidade de viver em grupo, do poder que temos em transformar o mundo e de ter mais prazer.
Esses lugares são refúgios que não cobram explicação, onde a vulnerabilidade é bem-vinda e o nosso corpo é presença.
Dizer "sim" ao prazer em um mundo que só fala de mérito já é um baita ato político. Na pista, a gente relembra que ainda sabe se mover junto, mudar junto. Que ainda sabe ser tribo, nem que seja por algumas horas.
Quando dançamos juntos, não estamos só nos divertindo. Estamos praticando um jeito ancestral de estar no mundo. Recuperamos um saber que o corpo nunca esqueceu: como ser com os outros.
Dançar é resistência porque o sistema prefere que a gente se sinta sozinho. Então, dance, senão estamos perdidos. Eu estou louca para dançar!
Dancing on my own
⚡ Nesta rave eu gostaria de ir;
🗺️ Um mapa do metrô que celebra a cena musical underground de Londres, mas os usuários estão reclamando que ficaram faltando muitos lugares;
📚 Um mergulho nas cidades onde o som cria pertencimento, memória e resistência: Cidades Musicais, livro que também está na estante esperando a leitura;
🎞️ Dizem que o novo filme “Rave On” é uma carta de amor para Berlim. Claro que quero assistir, mas a estreia é somente em 31 de julho;
🇩🇪 Documentário “Sound of Berlin” é um curta que faz uma viagem na cena eletrônica da cidade (Em inglês);
🎬 Assisti faz tempo e fiquei com vontade de rever depois de escrever essa edição: “The Summer of Rave 1989” (Em inglês); Outro que veio à mente foi a “A Batalha do Passinho” (2012) e acabei descobrindo que há um mais recente chamado “A História do Passinho”, lançado recentemente na Netflix. Na pesquisa que fiz, apareceu “A Alma da Gente” (2013), sobre o Corpo de Dança na Maré, mas não sei se tem disponível em algum canal;
🔥 “Summer of Soul” é outro documentário maravilhoso sobre um festival que rolou em 1969 com grandes nomes da música da época, mas não é o Woodstock;
🎹 Aproveito para deixar uma dica: Em outubro o Jeff Mills leva para São Paulo e Rio o espetáculo “Tomorrow Comes the Harvest”. Já assisti e é lindo de morrer. Escrevi sobre ele aqui.
Por hoje é só. Terminei essa edição dançando Robyn na sala, a ponto do meu marido chegar, me ver, e perguntar se eu tinha fechado algum projeto novo. Não, eu só estava dançando. Porque dançar é contagiante e me contagiei só de falar sobre esse ato maravilhoso que está sempre a um movimento de distância.
meu corpo respondeu ao ler esse texto lindo . Arrepio.
Amo dançar! Foi o que me salvou em tantas noites na pandemia. E que maravilhosas as fotos da edição ❤️ Obrigada, querida!