Trilha sonora para essa edição: Five Prayers by Joy Guidry, uma oração em forma de som, onde o fagote respira dor, silêncio e transcendência. Lindo, lindo, lindo!
Depois que publiquei o texto “A crise é estética (mas não só)”, passei por uma série de experiências que, de alguma forma, aprofundaram ainda mais essa sensação de exaustão criativa. Mas que também abriram outras perguntas sobre pertencimento, sobre o que é criar em tempos de excesso, e sobre os códigos invisíveis que definem o que pode ou não pode ser chamado de arte, autenticidade ou liberdade.
Decidi então transformar esse processo em uma pequena trilha de pensamento: esta é a segunda parte de uma minissérie em três capítulos sobre criatividade (ou o colapso dela). A terceira e última parte será sobre uma exposição que vi norteada pelo tema de que nada é original. Aguarde!

Berlim tem uma frase que pode acabar com sua noite (ou dia1) antes mesmo dela começar: Not today. Ela tem origem na porta do Berghain, o clube mais temido e desejado da cidade. O ritual é sempre o mesmo: horas na fila, sol a pino ou chuva no ombro, enquanto o medo cresce na garganta. Quando chega a sua vez, o segurança te encara com os olhos imóveis, mas está te julgando da cabeça aos pés. Enquanto você está com o coração acelerado, ombro duro, cara fechada (dizem que sorrir é má ideia) e olhar tenso, aí vem a sentença.
Alguns ouvem Wie viele? (Quantos vocês são?) - sinal de possível entrada, desde que não seja um grupo grande, ou seja, na maioria mais de duas pessoas, e a resposta esteja na ponta da língua. Para muitos o fatal e seco: Not today. Sem explicação, sem segunda chance. Eu já ouvi duas vezes. Na primeira, tive um ataque de riso. Na segunda, vontade de socar o queixo do cara que me negou a diversão.
Enquanto isso, Berlim ainda promete liberdade artística para quem quiser abraçar a criatividade. A cidade é um paraíso para artista provisório, de sabáticos a residências que legitimam muito trabalho mal feito como expressão. O resultado? Uma produção de arte ruim que fica ainda mais evidente em eventos democráticos de arte. Um deles é o festival ‘48 horas Neukölln’, que tem open call para quem quiser participar. Tudo vale: fotos tremidas em bares, instalações sobre o apocalipse, discussões sobre inteligência artificial projetadas em monitores que não funcionam bem.
Na semana passada, entre um ateliê e outro, entre DJs em janelas e multidões nas calçadas, entrei num lugar que fez valer a pena todo o rolê. O portão escancarado do prédio deixava à mostra um corredor com retratos pintados nas paredes, guiando até um jardim meio sombrio, meio psicodélico, onde cabeças e cogumelos coloridos estavam plantados.
No quintal, uma arara com roupas vintage improvisava um brechó em frente a uma casa irregular, quase um barraco. As paredes estavam cobertas de penduricalhos: um guarda-chuva colorido aberto, uma perna de manequim, uma ossada de algum bicho grande que não consegui identificar, uma lamparina, folhas e flores caindo por cima de tudo. Bem no meio da entrada, um aro velho de basquete fora de lugar, com o aro torto e sem rede. No chão, um sofá marrom antigo; acima dele, na janela, pendia um busto de manequim. Ao lado, uma espécie de porta de vidro escondia centenas de livros amontoados grosseiramente.
Senti como se estivesse atravessando um túnel do tempo e tivesse caído na Berlim Oriental pós-queda do muro. No corredor apertado da entrada, um senhor de cabelos brancos e cara fechada, observava tudo sentado com seus olhos impassíveis.
No cômodo ao lado, uma sala foi transformada em pista de dança minúscula, iluminada por flashes de luz rosa, onde uma mulher girava uma criança ao som de synth-pop. Uma cadeira nos fundos e um sofá na lateral, de onde saía uma escada torta que dava para um sótão escuro. Um móvel logo na entrada tinha um busto de manequim usando cinto de couro atravessado no peito e, colada nele, uma folha plastificada com um texto que parecia responder à minha última edição sobre a crise estética.
“Not today
Berlim, junho de 2025.
Uma cidade obcecada pelo mito da liberdade — culturalmente progressista, sexualmente livre, radicalmente autônoma. Mas essa liberdade vem com roteiro. Por trás da estética do inconformismo, esconde-se uma ortodoxia: o que vestir, como pensar, para onde ir, o que sentir.
O manequim — branco, sem rosto, sem braços — é o sujeito moderno. Liso, oco, à espera de ser preenchido. Privado de ação, esvaziado de identidade, ele permanece imóvel, pronto para as projeções alheias. Em nome da individualidade, torna-se a tela da expectativa coletiva.
E então, existe a porta. O ritual sagrado da aceitação. Um sussurrado "not today" na entrada de um clube vira mais que rejeição — é dúvida existencial. Não sou cool o suficiente? Livre o suficiente? Berlinense o suficiente?
Esse momento arbitrário ativa uma ansiedade maior: a de que estamos sempre tentando pertencer a códigos que não escrevemos. "Not today" é ao mesmo tempo hematoma e distintivo. Uma negação passivo-agressiva. Um suspiro fantasiado de resistência. Um mantra de uma geração que negocia constantemente seu lugar em espaços que prometem liberdade, mas oferecem performance.”
Li, reli, tirei foto e saí. Ainda vasculhei a última sala, um ateliê com muita tralha, mas limpo e organizado com telas pintadas no canto, muitos móveis tortos e estantes com muita bugiganga. Fiquei ali por algum tempo tentando entender aquele espaço e tempo que pareciam tão distante de tudo que eu tinha visto até então.
Busquei ar fresco no bar ao lado com um drink sem álcool na mão enquanto ainda pensava no texto. Minha noite terminava ali, pois às vezes a gente sabe a hora de parar.
Esse foi o momento que mais me emocionou em dias: ali, entre exposições que não me disseram absolutamente nada. Achei cru, imperfeito, desconfortável, estranho, mas autêntico.
E, me veio a resposta que deixei na última edição: Como sabemos quando algo é autêntico? Porque a gente sente na pele.
[…] a vida só arrepia a pele quando nos toca com profundidade. Emoção real exige envolvimento. E envolvimento exige tempo, entrega, repertório. -
✨ Neste fim de semana vai rolar uma imersão no universo das newsletters com participantes de peso da literatura brasileira: O texto e o tempo.
🔴 Sou grande fã da
, que acabou de levar a para o Youtube. O primeiro vídeo já denota algo bem autêntico e diferente do que tenho visto em geral. Gostei de como ela transpôs a newsletter para o vídeo mantendo toda a poesia que ela carrega em seus textos.📚 Finalmente decidi encarar o “Realismo Capitalista”, do Mark Fischer. É tão porrada, que tive que mudar a leitura da noite para o dia, porque estava atrapalhando o meu sono.
🎬 O livro acima me levou a rever o ótimo filme “Os filhos do homem”, com o Clive Owen e a Juliane Moore.
📺 Comecei a 4ª temporada de “The Bear”. Estou ainda indo para o 3º episódio, mas estou gostando (amo a série, então sou suspeita, mas a fala da Sugar sobre amar o que faz para o Carmen no 2º episódio me tocou especialmente).
🔥 O que as IAs têm a ver com áudios a 2X e as vulvas gêmeas de Cristina Peri Rossi?
⭐ Sobre Arendt e política (e Twin Peaks).
❤️ Estou lendo paralelamente o “Batida Só”, da Giovana Madalosso. Estou gostando da leitura e curiosa de onde ela vai parar.
♡ Três newsletter que adoro acompanhar:
, e .💃 Uma trilha sonora para dançar em casa: Courtesy no NTS.
🎹 Estou com inveja de quem está em São Paulo e vai ver o Nicolas Jaar no sábado.
Finalmente o calorão deu trégua em Berlim. Depois do termômetro bater 38ºC ontem, temos uma quinta-feira fresca com ventania e chuviscos. Neste momento, confesso ser um abraço apertado que eu estava precisando.
Deixo “Sever” (2022) para fechar, álbum da Surgeons Girl.
Tschüss!
A festa principal do Berghain, o Klubnatch, começa no sábado às 23h59 e vai até segunda-feira, às 8h da manhã. A ordem costuma ser: os turistas já formam fila no início da noite de sábado, enquanto a maioria dos moradores da cidade vão no domingo pela manhã e/ou início da tarde. Por isso, ficou conhecida como a missa de domingo mais frequentada de Berlim.
Estou amando os temas que vem abordando Lalai. Para mim falar sobre a expressão artística, autenticidade, é falar sobre desconforto.
Produzir àquilo que lhe brilha aos olhos, independentemente de qualquer tendência, prestígio etc é muito difícil, pois é preciso sustentar. Confesso que vivo este processo por aqui, tento casa vez mais viver a autenticidade, ao passo que, não nego, sofro para sustentar pois não estamos habituados, muito menos "abertos" a gostar de coisas realmente autênticas. O superficial e "esteticamente ok" imperam e o que chamamos de belo acaba sendo só mais do mesmo, de um jeitinho um pouco diferente.
Eu fiquei sabendo dessa boate pelo Tiktok e pensei imediatamente em você, Lalai!!! Você já entrou? Vale a pena todo esse burburinho? (Estou adotando esses textos sobre expressão artística e criatividade. A verdade é que, se todo mundo fosse de fato artista, a gente não teria artistas… penso nisso às vezes)