Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura. Mensalmente eu me dedico a destrinchar um tema com profundidade, como a felicidade, comida, comunidades, criatividade e inteligência artificial e um dossiê sobre Berlim. Considere apoiar mensalmente a Espiral ou me pague um café.
Trilha sonora para esta edição: “O Anti-techno, a música eletrônica árabe”, Vivian Caccuri.
Olá,
Junho foi cheio de afeto, música e festas. A melhor coisa do mês foi fazer aniversário, estar cercada de pessoas que gosto e visitar um dos meus festivais favoritos, o Sónar Barcelona. Foi um mês apaixonado e apaixonante. A paixão é dessas, sempre nos desestabilizando, senão não é paixão. Por aqui, fiquei meio torta, sorriso grudado na cara, cabeça nas nuvens e o coração batendo forte.
Além da paixão, chegou o verão, este que sempre me tira de dentro de casa. Eu quero pegar o mundo pelas mãos, levá-lo para passear, contemplá-lo durante um banho de sol, acariciá-lo enquanto o almoço não chega e ter um tête-à-tête sincero durante as minhas pedaladas.
Nas recaídas que tenho, pesquiso preços de passagens para curtir dias ensolarados no meio do Mar Egeu, onde a areia reluz de tão branca, mas no fim das contas, eu não consigo ir tão longe. Berlim fica tão sedutora nesta época do ano, que parece prender a minha alma no poste. Ela não me deixa partir. E, por aqui, fico enamorada, com brilho nos olhos, me apaixonando novamente pela cidade. Viro adolescente, despreocupada, de cabelos desarrumados, carregando um sorriso que não se desfaz de jeito nenhum. Ouço “Lalai, você anda com uma cara boa.” “Estou apaixonada”, respondo cerrando os olhos.
É uma época do ano em que tudo fica em movimento. Os amigos e as amigas cogitam vir de longe para me visitar. Uns aparecem, outros apenas ensaiam. E, quando me dou conta, junho virou julho. Mas como reclamar? Celebrei meu ano novo por 5 semanas achando que fazer 50 anos merecia todo um carnaval.
O tempo voou! Ou sou apenas eu envelhecendo? O relógio por aqui segue no ritmo de sempre, mas sinto o tempo apressado, a vida, num lampejo, parece querer escapar.
Junho, que mês animado! Curto. Desfocado como são os meses de verão. Ensaiei escrever sobre afeto e amizade inspirada por papos recentes, que atravessaram a madrugada, esvaziaram garrafas de vinho e resgataram um “eu” adormecido, deixando um pequeno vazio quando o meu interlocutor partiu.
Entendo então que precisamos de tempo, logo este que está sempre faltando, para saborear essas conversas tão excepcionais. No fim das contas, eu falhei miseravelmente e a edição da semana passada não saiu. Me perdoem? É verão.
Enquanto faço isso, separo aqui as cinco coisas que deixaram minha alma em junho mais em festa do que ela já anda. 🎉
📚 Marcas de Nascenca, Nancy Huston
A leitura de “Marcas de Nascença”, de Nancy Huston, assim como junho, me tirou do prumo. Sigo estupefata. Fiquei tão mexida, que li entrevistas com a autora e teses sobre a obra para entender de onde saiu uma história tão bem construída. Algumas pistas eu já tenho. Inicialmente, por uma falta de atenção, acreditei ser baseada na história da própria escritora. Google aqui. Google lá. ChatGPT também entrou na roda. Mas nada.
“Marcas de Nascença” é uma narrativa incomum sobre identidade. Huston percorre meio século da história moderna para discorrer sobre conflitos pessoais de 4 personagens de 4 gerações diferentes. Em comum, uma marca de nascença que todos carregam na pele, tem sempre uma guerra diferente acontecendo quando cada história é narrada e todos os personagens estão em lugares diferentes do mundo.
A história é contada em ordem cronológica inversa, começando com a narrativa de um menino chamado Solomon em 2004, depois retrocedendo no tempo para o seu pai, sua avó e, finalmente, sua bisavó, em 1944-1945 numa Alemanha completamente devastada pela guerra. Cada uma dessas narrativas é contada sob a perspectiva de uma criança de seis anos.
Sol, em 2004, na Califórnia, em meio à Guerra do Iraque; Randall, pai de Sol, em 1982, em Haifa, Israel, na época da Guerra do Líbano e dos massacres de Sabra e Chatila; Sadie, mãe de Randall, em 1962, em Toronto, Canadá, durante a Guerra Fria; e, por fim, Kristina, mãe de Sadie, em 1944-1945, na Alemanha, no fim da Segunda Guerra Mundial.
Diferentemente do que costuma ser, as crianças não são nada ingênuas. Elas são dotadas de uma visão de mundo bem peculiar, às vezes ácida demais para alguém de tal idade, em especial Sol:
“Sou realmente feliz por ter nascido menino e não menina porque é mais raro que os meninos sejam estuprados, a não ser que sejam católicos, coisa que nós não somos”. - Solomon (2004), Capítulo 1 - Marcas de Nascença, Nancy Huston
O livro traz à tona uma história horrorosa, o projeto chamado “lebensborn”, programa nazista, iniciado em 1935, para expandir a população ariana. Incentivava famílias arianas a ter mais filhos e “germanizava” crianças não alemãs, mas com traços considerados arianos, muitas vezes sequestrando-as para adoção em famílias alemãs. “Lebensborn” traduz literalmente para “fonte da vida”. Estima-se que cerca de 400 mil foram roubadas de suas famílias na Europa Oriental e Noruega, sendo metade dos sequestros feitos na Polônia.
Huston aprofunda-se na transmissão de traumas e segredos familiares através das gerações. A obra é uma narrativa que, a cada camada, traz mais profundidade e compreensão aos personagens e suas circunstâncias, influenciados por eventos globais. Em meio a temas complexos como os impactos da guerra, deslocamento, a sombra do passado no presente e as delicadas questões éticas da vida moderna, o romance mostra a intrincada teia de conexões que moldam nossas vidas. Gostei do que a
, que indicou o livro, me disse sobre “a imagem do judaísmo ser como uma marca indelével de nascença.”A própria história da escritora Nancy Huston se cruza com o livro na questão de identidade. Nascida em Calgary (Canadá), ela foi abandonada pela mãe os 6 anos de idade. Na adolescência, seu pai namorou uma alemã, o que lhe proporcionou viagens frequentes à Alemanha e despertou seu interesse pelas línguas estrangeiras. Aos 20 anos, decidiu estudar na França sob orientação de Roland Barthes. Este exílio autoimposto permitiu que ela rejeitasse seu passado, se reinventasse, e compensasse a ausência materna ao abraçar uma nova identidade e língua, publicando a maioria de seus livros em francês.
“A escrita em língua francesa merece especial atenção na vida literária de Nancy Huston. Deixar o Canadá significou para ela encerrar a língua inglesa em um quarto escuro, onde só entraria a fim de ministrar aulas de inglês, ainda em seus primeiros anos em Paris. Forjando para si uma nova identidade, a escritora adota o francês como língua de escrita, o que a faz viver o estranhamento que julga necessário para a prática do texto.” - Vanessa Massoni da Rocha
🎧 ÁTTA, Sigur Rós
O Sigur Rós é uma das minhas bandas atuais favoritas. Já os persegui em turnês e cheguei a aparecer na lista de algum ano do Spotify como uma das 100 pessoas no mundo que mais escutavam a banda.
“ÁTTA” é o oitavo álbum da banda e o primeiro produzido em estúdio a ser lançado nos últimos dez anos. Foi gravado em diferentes países e estúdios, incluindo o Abbey Road, acompanhado de uma orquestra com 41 músicos e tendo os metais executados por colaboradores de longa data da banda, o Brassgat í bala. A parceria da banda com a orquestra acrescentou uma dimensão deslumbrante ao trabalho, solidificando sua influência no cenário do pós-rock.
O álbum tem uma beleza e qualidade quase transumana. Para mim, o encanto e a magia da Islândia traduzidos em música. Eu fecho os olhos e facilmente me vejo em meio aos vulcões, geleiras, praias de areia negra e o céu banhado por auroras boreais.
Os falsetes de Jónsi, com sua guitarra tocada em arco, torna a sonoridade ainda mais etérea. Seus vocais marcantes e a dinâmica musical encantam, em especial nas faixas “Andrá” e “Gold”. O álbum culmina na faixa “8”, uma meditação formidável que fecha “ÁTTA” num momento de profunda tranquilidade. Achei um álbum solar.
Ouça-o na ordem, pois apesar das faixas separadas, elas são praticamente contínuas parecendo uma só. “ÁTTA” é lindíssimo e mágico. Dê o play, feche os olhos e vá!
♡: Decolonizando o protagonismo do techno
O texto da
sobre como a música árabe eletrônica tem ganhado cada vez mais espaço em clubes e festivais pelo mundo me tocou de maneira especial.“[…] Quem me deu esta teoria da música árabe ser uma espécie de antítese do techno, foi o próprio Hasan Nakhleh, o primogênito dos Tootards.
Segundo ele, a Europa está se saturando do som abstrato e repetitivo do techno, e como o ouvido é um ótimo - talvez o melhor - aventureiro, abre-se uma oportunidade para sons hiper melódicos como a disco e os gêneros árabes. Os gêneros do Oriente Médio ainda tem uma característica que eu adoro, que são os “meio semi-tons”, que criam um sistema de notas musicais incrivelmente maior que a da música ocidental, além de uma diversidade rítmica que resiste bravamente ao enquadramento no 4 por 4. - Vivian Caccuri, Fritness
Eu me rendi ao “arabismo” ou “house de areia”, como eu costumava chamar o estilo, em 2016 quando fui ao Afrikaburn pela primeira vez. Por lá, eu me deparei com DJs e produtores de música eletrônica que traziam influências árabes para seus sets. Mas ainda eram todos homens brancos, a maioria europeu, atrás das pickups. Eu mesma comecei a tocar sets recheados de beats orientais em festinhas pequenas.
A live da tunisiana Deena Abdelwahed no Sónar 2019 me trouxe um olhar diferente ao que eu estava ouvindo até então, me deixando mais atenta aos artistas que de fato vêm de países do Oriente Médio e arredores.
Já em 2020, um mês antes da pandemia fechar as portas do mundo, eu fui ao CTM Festival e vi um show impressionante do produtor e compositor sírio Rizan Said.
Apesar de tudo que se passou desde então, eu consigo evocar tudo que aconteceu durante o tempo que ele tocou. A alegria contagiante da música, as pessoas dançando e suando na caverna escura em que nos encontrávamos. Ali, eu me dei conta de que o que eu estava ouvindo, como Oliver Koletzki e Monolink, por exemplo, ainda estava longe do que de fato é a música eletrônica árabe.
Berlim é um caldeirão multicultural e é, no Ocidente, uma cidade propícia para descobrir novas sonoridades que descontróem nossa visão musical (e audição) eurocentrista e, também, americanizada.
Enquanto escrevo esta newsletter, planejo sábado dançar até o sol raiar na Adira, festa queer pop árabe que acontece em Berlim. Como a Vivian menciona, ir a uma festa dessas é deixar esses ritmos e sons infiltrarem no nosso corpo e ser possuída por um demônio dançante. Impossível não se render!!! Para mim, é sempre uma experiência especial. Assim foi na última segunda-feira quando o duo francês-algeriano Acid Arab botou fogo num palquinho nos fundos do clube Gretchen. O público, de todas as idades, se rendeu de tal maneira como se o mundo fosse acabar e ali fosse a última vez que dançávamos.
Quem estiver em Berlim nas próximas semanas, fica a dica para ver (de graça) a dupla Tootard, que a Vivian menciona no artigo. Eles se apresentam no Humbold Fórum, a céu aberto, no dia 21 de julho. Prepare-se, porque eles vão incendiar a pista como sempre fazem.
Deixo aqui também um set bem delicinha para incendiar os seus ouvidos e te fazer chacoalhar os ombrinhos.
📽 Cabaré Eldorado
“Cabaré Eldorado: Alvo dos Nazistas”, é um filme documentário que embarca na comunidade queer na década de 1920 em Berlim. Antes
O documentário examina a vida LGBTQI+ na Alemanha da República de Weimar através do prisma do clube Eldorado, um refúgio para a comunidade trans e para todos que gostavam de se libertar. A produção revela a ironia de como Ernst Röhm, confidente de Hitler e chefe abertamente gay da ala paramilitar nazista SA, frequentava o clube.
Conforme os anos 1920 viraram os anos 1930, alguns dos primeiros membros de destaque do círculo íntimo de Hitler, abertamente gays, tornaram-se alvos da “imoralidade” pelos seus opositores dentro do partido. Assim, os nazistas se autodenominaram puritanos cristãos, mas revelaram-se brutais hipócritas.
O filme é uma viagem através de noites selvagens, relacionamentos proibidos e as consequências horríveis que o regime nazista trouxe também à comunidade queer. Através de reconstituições, pesquisa aprofundada e histórias individuais emocionantes, “Eldorado” traz à vida um período vibrante e trágico da história LGBTQI+.
É comovente ver como Berlim em 1920 era a cidade mais liberal e mais queer-friendly do mundo. O documentário é emocionante.
☄ Ryoji Ikeda: Sónar 2023
Infelizmente não há vídeo da apresentação, mas o Ryoji Ikeda foi o melhor show que vi no Sónar e, provavelmente, o melhor que vi este ano.
Escrevi rapidamente sobre ele na última Espiral, mas não consegui deixá-lo de fora desta edição. Sigo impactada querendo ver de novo. Foi uma apresentação única em que os visuais e sua noisy music me deram uma aula sobre como contar uma história. Teve começo, meio e um final promovendo uma catarse coletiva.
Antes de Ikeda entrar no palco, um texto no telão alertava “Este espetáculo inclui luzes e flashes que podem afetar pessoas com epilepsia fotosensível”. Não duvido! Ikeda apresentou o álbum “Ultratonics” (2022) acompanhado de uma projeção com flashes ininterruptos preto e branco apresentando um extenso catálogo de glitch eletrônico.
Ryoji Ikeda, para quem não conhece, é um artista visual e sonoro. Sua música explora o som em uma variedade de estados “brutos”, como tons senoidais e ruído, muitas vezes usando frequências nos limites do alcance da audição humana. Seu foco está nas características essenciais do som em si e das imagens como luz, por meio de precisão matemática e estética matemática. Ele orquestra elaboradamente som, visuais, materiais, fenômenos físicos e noções matemáticas em performances ao vivo e instalações imersivas.
Em seu canal no Youtube é possível ver um pouco de sua obra. Ele estará em tour em 2024 para apresentar este mesmo show, então fique de olho! O próximo show está marcada para novembro, no Barbican, em Londres.
Come with Me
Além de tudo, acho que o principal em junho foram as pessoas que estiveram à minha volta. E foram muitas. Barcelona reuniu um pequeno grupo de maneira muito especial proporcionando momentos mágicos que há muito tempo eu não tinha. Sabe quando você coloca a cabeça no travesseiro e fica revivendo momentos como quando está apaixonada? Estou assim. Aos que estavam lá e estão lendo aqui, agradeço a cada um de vocês por terem participado desses dias tão musicais e bonitos. Eu só sonho com mais dias assim. ♡
💫 Também assisti em junho duas performances potentes em Berlim que, de alguma forma, se conectaram entre si: “Æffective Choreography”, de André Uerba, que explora intimidade, corpos e biografias, nos fazendo refletir sobre o nosso corpo em tempos de rapidez, traumas, violência e caos; e a feminista “Super Superficial”, de Kysy Fischer, onde três mulheres nuas no palco se rebelam, entre arte e obscenidade, assumindo controle de suas próprias imagens através da duplicidade. Espero que voltem em cartaz.
🎶 Dois álbunsl lindíssimos lançados nesta semana: “I Inside the Old Year Dying”, de PJ Harvey, e “Somnum”, do Hælos;
🇵🇸 Boiler Room Palestina maravilhoso com a DJ Sama' Abdulhadi, é antigo, mas super atual e um dos meus favoritos;
🎛️ “Black to Techno”, documentário dirigido por Jenn Nkiru;
💿 Resgatei uma playlist antiga que fiz e ouvi exaustivamente. Ela está tão solar como eu ando me sentindo: Oriental Tales;
🛣 O multi-instrumentista e compositor francês Yann Tiersen fez uma live dentro do antigo aeroporto Tempelhofer, em Berlim, que é de chorar de tão linda. Joga no telão e embarca;
📕 Estou lendo e me emocionando com “A vida pela frente”, de Émile Ajar, e reli essa semana o ótimo (e curtinho) “Favor Fechar os Olhos”, do Byu-Chunl Han;
📰 Um compilado de tudo que rolou no último Festival Cannes Lions;
👸 Já é possível se hospedar na mansão da Barbie, em Malibu;
🤑 Para refletir “O que é uma boa vida e por que não temos uma?”, no
;🛫 Viajar para a Europa não está fácil;
💬 Amei este texto “Alguma vez alguém já foi tão jovem?”, de Natalia Castro;
💌 Para quem mora em Berlim, estou aqui também.
Um bom fim de semana para vocês.
Vou passar o final de semana catando todos os links que você deixou ao longo do caminho. Esta Espiral torceu a espinha, literalmente
Bons momentos, Lalai!
Amei a edição! Eu morro de vontade de ler o “A vida pela frente” - quem é super fã dele é a Sarah Germano. Você já leu a resenha que ela fez sobre o livro? https://literalmente.substack.com/p/a-vida-pela-frente-de-emile-ajar?utm_source=profile&utm_medium=reader2