Espiral #91: As 5 melhores coisas de agosto
Uma lista com as coisas que mais mexeram com os meus sentidos
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura, além de trazer sempre dicas de assuntos que andam revirando meus sentidos.
Caso você more ou esteja visitando Berlim, não deixe de conhecer a minha newsletter
.Trilha sonora para esta edição: “Paranoïa, angels, true love”, Christine and the Queens
Agosto foi um mês longo em que me dividi entre a Alemanha e a Suécia. Pareceu durar cem dias, com o tempo oscilando entre dias cinzas horrorosos e outros ensolarados como o verão deveria ser.
Celebrei os dez anos de casada num dos meus festivais de música favoritos do mundo, o Way Out West, onde o conforto para o público mais velho é levado a sério. Por lá, restaurantes pop-up são construídos no meio da floresta para o público saborear a refeição em tempos, tem bar de vinho natural e de cerveja artesanal, a comida é boa nas várias áreas de alimentação (somente opções vegetarianas) e tem muitas áreas de descanso, o que me faz vibrar atualmente em qualquer festival.
O Blur, uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos, foi o que me motivou a ir ao festival. O show foi divertido e lindo em meio à uma noite de lua cheia. Damon Albarn estava animado e falante, mas a minha surpresa real foi com os shows da Tove Lo, Arlo Parks e Christine and the Queens, que tocou recentemente no Brasil. Meu lado pop dominou e a Tove Lo ganhou o meu coração. Para fechar agosto, eu bati cabelo no show do Yeah Yeah Yeahs!
Sempre que faço a edição das 5 melhores coisas que vi no mês, eu reviro meu álbum de fotos no celular, porque é a maneira mais fácil que encontro para armazenar referências no meu segundo cérebro. Fiquei chocada com tanta coisa que vi e fiz em agosto, então optei por trazer o que me moveu e emocionou de alguma forma. Notei que todas elas foram obras produzidas por mulheres com as quais me identifiquei em muitos pontos.
Talvez, é também porque tem sido para o universo feminino que eu ando olhando a maior parte do tempo. É nele que eu estou sempre aprendendo algo novo e onde meus incômodos chacoalham dentro de mim. Me tira da zona de conforto. Faz-me questionar o que eu tenho feito da minha vida? Para onde eu estou indo? Como estou envelhecendo? No que eu acredito? Tenho um propósito? Como vejo o mundo à minha volta? Como eu me relaciono com ele? Eu tenho feito algo para contribuir para que o mundo seja um pouco melhor? Ou tenho olhado apenas para o meu umbigo? Onde estou neste momento? Socorro, me dá a mão e um abraço!
Esta lista abaixo são de 5 mulheres que trouxeram reflexões como essas e me fizeram escrever mais do que de costume nas minhas páginas matinais. Espero que pelo menos uma delas possa também tocar algo aí, porque é por isso que lemos, vemos arte, ouvimos música, assistimos filmes…. caso contrário, apenas nos anestesiamos num mundo que já tem nos anestesiado demais.1
1) Wise than Me: Conversa entre Julia Louis-Dreyfus e Isabel Allende
Que conversa extraordinária! Eu ri e chorei com a emoção escorrendo por todos os lugares, mas também pudera, duas mulheres grandiosas falando sobre a vida, ser mulher, amor, filhos, envelhecimento, espiritualidade e morte. A Isabel Allende é uma mulher fora do comum. Sua honestidade surpreende ao falar e assumir assuntos, que lhe são tão caros, em público.
Allende, aos 80 anos, sente-se feliz e orgulhosa com a idade. Casou-se em 2019 pela terceira vez com um homem que conheceu através de correspondências. Mostra-se apaixonada ao mesmo tempo em que questiona se o casamento atual está funcionando. Teria ela caído numa enrascada agora que ele está doente e é ela quem cuida dele? Discorre sobre sua prolífica carreira como escritora, iniciada aos 40 anos com o livro “A casa dos espíritos,” o abandono dos filhos por conta de uma paixão, a morte de sua filha Paula, que resultou no livro homônimo, até sua obra mais recente, Violeta, uma homenagem à sua mãe.
“A viagem da vida é feita de longos trechos tediosos, passo a passo, dia a dia, sem que aconteça nada de impactante, mas a memória é feita de acontecimentos inesperados que marcam o trajeto. São esses que vale a pena contar.” - Violeta, Isabel Allende
Durante anos, Allende trocou correspondências diárias com sua mãe, resultando em 24 mil cartas guardadas. Para ela é um backup de suas memórias para ajudá-la a a escrever seus livros.
O tema “morte” aparece de maneira emocionante no fim do episódio. Não darei spoiler, mas chorei junto com a Julia, outra que também expõe sua vulnerabilidade em vários momentos. Para mim, um dos pontos altos da conversa.
Esse episódio é uma lição sobre vida e recomeços, afinal quem hoje acha que recomeçar aos 40 é tarde, trate de ouvir a dona Allende falar, por favor. Chacoalhou tudo por aqui.
O episódio é em inglês. Caso você tenha dificuldade com a língua, pode pegar a transcrição aqui e traduzi-la para o português. Tem também um episódio com a Jane Fonda, tocante em diversos momentos em especial neste trecho da conversa:
Julia: “Você fez cirurgia plástica, certo?”
Fonda responde: “Sim. Lamento dizer que sim.”
Julia: “Você realmente lamenta dizer isso?”
Fonda: “Sim, lamento ter feito cirurgia plástica. Eu queria ter conseguido envelhecer naturalmente com o meu rosto, mas não consegui. Não me sinto bem com isso. Não é real. Eu sei, mas não posso fazer nada a respeito agora.”
Pah!
Caso você tenha Kindle Unlimited, o livro “Paula” está disponível gratuitamente.
2) Na Sala dos Espelhos, Liv Strömquist
"Tirar selfies o tempo todo surge do desejo de fazer o tempo parar. [...] É uma espécie de protesto contra a própria insignificância e mortalidade." (Liv Strömquist)
Fiquei super feliz em ver os quadrinhos da sueca Liv Strömquist sendo traduzidos para o português. Para quem não a conhece, ela é cartunista, cientista política, escritora e a sua obra é feminista e provocadora.
“Na Sala dos Espelhos”, Strömquist escreve a respeito do discurso europeu sobre a beleza nos últimos 2 mil anos. Sua escrita é cheia de ironia e pautada em autores, como Susan Sontag, Byung-Chul Han, René Girard, Zygmunt Bauman, Naomi Wolf, entre outros.
O que é considerado belo? Qual o significado da beleza para nós? Por que investimos tanto tempo, dinheiro e energia em busca de um ideal? E qual é a trágica relação entre beleza, casamento e o sucesso?
O ponto de partida do livro é a nossa obsessão pela imagem perfeita de Kylie Jenner e em querer a todo custo se parecer com ela. Para tentar encontrar uma possível explicação a esse fênomeno, Strömquist recorre à teoria mimética, em que René Girard propõe que, uma vez satisfeitas as nossas necessidades básicas, as pessoas sempre desejam o que os outros desejam. Para Girard, o desejo é mimético e não inato, ou seja, nós seres humanos copiamos os desejos uns dos outros: Só interessa o que não é meu.
Dedicamos horas ao Instagram, observando fotos de nós mesmos e dos outros. Através dessas imagens, nos comunicamos e inevitavelmente nos deparamos com uma das questões da nossa existência como mulher: Sou merecedora de amor? Afinal, a beleza é um recurso valioso, uma espécie de garantia e uma maneira de progredir na vida. Essa incessante exposição a imagens midiáticas significa que estamos constantemente nos comparando com os outros. As redes sociais potencializaram ainda mais esse desejo de querer ser igual ao outro.
Susan Sontag disse: “A câmera terminou por promover uma brutal ascensão do valor das aparências. Das aparências como a câmera as registra.” Ou seja: o que importa não é a aparência da pessoa, mas sua aparência na foto, o que explica o tamanho sucesso dos filtros e até mesmo as criações de avatares. E, lá em 1970, Sontag já afirmava que “hoje, tudo existe para terminar numa foto”.
Concluímos que a beleza física e as perspectivas de sucesso estão ligadas há séculos, especialmente para nós mulheres.
Strömquist resgata a história de Marilyn Monroe que passou três dias e três noites sendo fotografada por Bert Stern, morrendo de overdose semanas depois. A imagem dela está sob a posse do outro. Avançamos décadas na história e chegamos na Kim Kardashian que não precisa de nenhum fotógrafo dizendo “você é linda”, pois ao se fotografar, ela mesma já sabe disso. Comparando as duas histórias, podemos concluir que “Kim desenvolveu a capacidade de se enxergar com o mesmo tipo de olhar lascivo de um mulherengo.” Ou seja, ela tem domínio sobre sua própria imagem.
Seria então as selfies uma forma de protesto contra a comercialização do nosso corpo?
Chega de spoiler! Dentro ainda desse tema sobre beleza e redes sociais, eu recomendo a leitura de “O Instagram está padronizando os nossos rostos”, de Camila Cintra. Em Berlim, o livro teve adaptação para o teatro.
Também recomendo a leitura de “A origem do mundo: Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado”, da mesma autora.
3) Lord of Lords, Alice Coltrane (1972)
A audição foi indicada pelo
e ficou no repeat por aqui. “Lord of Lords” é um álbum nitidamente espiritual e arrebatador. Gravado com uma orquestra e 25 instrumentos diferentes, ele cria uma trilha sonora perfeita para o fim do mundo com direito à rendenção no final. Tão intenso que é possível vislumbrar uma luz branca se acendendo no final de maneira inesperada. Vinde a mim!Alice Coltrane cresceu em Detroit em uma família de músicos. O seu talento excepcional surgiu logo cedo ao aprender a tocar piano e, posteriormente, estudando música clássica e jazz no conservatório da cidade. Estudou com Bud Powell, tocou em clubes de jazz e trabalhou como pianista para artistas renomados até se mudar, no início dos anos 1960, para Nova York. Foi lá que conheceu John Coltrane, na época já figura fundamental no jazz avant-garde. Que encontro!
Alice não apenas se casou com Coltrane, como passou a integrar oficialmente a sua banda, um desafio enorme, não apenas por substituir o grande pianista McCoy Tyner, mas também por ser mulher e ter apenas 26 anos. Ela abraçou o convite e se tornou uma respeitada artista, inclusive ela também tocava harpa.
Após a morte prematura de John Coltrane (1967), Alice passou por uma profunda busca espiritual explorando várias religiões, incluindo o hinduísmo e o sufismo. Sua espiritualidade se tornou parte central de sua música, levando-a a criar o "jazz espiritual" ou "jazz cósmico". Ela incorporou elementos de música indiana e africana em sua obra, além de explorar temas espirituais e cósmicos em suas composições.
“Lord of Lords”, resultado de sua fase espiritual, foi gravado após uma viagem à Índia que Alice Coltrane fez para se tornar uma swamini, uma espécie de líder espiritual. Para a nossa sorte, ela nunca abandonou completamente suas raízes do jazz.
A sonoridade de “Lord of Lords” é crescente e volumosa em suas 5 faixas, as quais eu recomendo ouvir na ordem sequencial. É um disco surpreendente, denso e iluminado. As texturas são tantas que, ao fechar os olhos, é quase possível vê-las se materializando à sua frente.
Virei fã de Alice Coltrane. Você pode ouvi-la aqui e aqui para mergulhar um pouco mais em sua obra.
4) O mundo sem anéis: 100 Dias de Bicicleta, Surina Mariana
São raras às vezes em que uma obra me vira do avesso. Este ano tive duas experiências em que uma leitura me tirou do prumo, a primeira foi “Ioga”, do Emmanuel Carrére, e agora, “O mundo sem anéis - 100 dias de bicicleta”, da Surina Mariana, que eu peguei para ler porque estava em busca de uma distração e gosto bastante da escrita da Surina.
Em comum, os dois livros compartilham uma reviravolta na vida dos autores, resultante de uma experiência que inicialmente deveria ter um começo e um fim definidos, mas que acabou saindo do controle e seguindo por um caminho inesperado.
A Surina concluiu um doutorado na Suíça, país que ela detestava, e embarcou em uma viagem de bicicleta de quinze dias com uma amiga, que acabou se transformando em três meses de uma aventura solo. Ela percorreu 5 mil quilômetros entre Portugal, Espanha e França, onde em cada quilômetro foi deixando seus medos para trás.
É notória a transformação que ocorre com a autora, que se aventurou sem qualquer preparo físico e sem nunca ter enfrentado uma estrada em uma bicicleta. Não levou computador, smartphone e nem planos concretos, mas ao se arriscar, não apenas viveu uma grande aventura, como me parece ter dado início à uma transformação de vida.
A viagem aconteceu em 2013, o livro foi publicado em 2016. Desde então, a Surina largou um emprego estável em Brasília, mergulhou na meditação, foi para Índia diversas vezes, passou dois anos num ashram e atualmente mora no interior de Portugal, em São Martinho das Amoreiras, com o namorado e o gato.
“Disse sim à mensagem que a Carol mandou de Genebra, explicando sobre os mais de mil quilômetros de ciclovias que se estendem pela costa atlântica da França, entre a Bretanha e a fronteira com a Espanha. Sim aos alforjes, às roupas de ciclista, aos mapas, às passagens de trem, ao equipamento de camping, a quinze dias viajando de bicicleta pela primeira vez.
Sim à viagem, que não é sair da ilha, mas perder-se em volta dela. Às vezes, quando não existe solução, a única coisa a fazer é contornar.” - O mundo sem anéis, Surina Mariana
Acompanhar o Sofá da Surina, anos após o lançamento do livro, me faz perceber a visível diferença entre quem era a autora na época em que o escreveu e na pessoa que é agora. Não a conheço, mas a transformação que a viagem causou é óbvia.
Lembra do texto sobre a zona de conforto? Então, ela escolheu não estar nela. Abraçou o aprendizado e parece ter feito a escolha correta.
5) Małgorzata Mirga-Tas
Małgorzata Mirga-Tas (1978), artista polonesa, ganhou uma restrospectiva de seu trabalho que mistura pintura, colagem e tapeçaria. Suas obras são em grande escala, coloridas e femininas. São todas de uma beleza delicada.
Mirga-Tas nasceu em um assentamento cigano em Czarna Góra, Polônia, chamado Roma. Em sua obra, ela mergulha na ancestralidade e nas experiências de vida cigana, explorando não apenas os estigmas associados à sua identidade cigana, mas também às questões de gênero. Através de cenas da vida cotidiana, ela desafia e desmistifica estereótipos prevalecentes, oferecendo uma visão mais autoconfiante e empoderada da comunidade. O trabalho é lindíssimo e retratado de uma maneira otimista.
Sua prática artística está profundamente entrelaçada com seu ativismo a favor da comunidade Roma. Ao longo de séculos, essa comunidade foi retratada por artistas externos, frequentemente com estereótipos racistas em suas representações.
Em suas obras, Mirga-Tas faz referência a essas problemáticas pegando imagens históricas e dando elas um novo significado. A artista foi destaque na Bienal de Arte de Veneza, no Pavilhão da Polônia.
Coloque-a na lista de artista para ficar de olho.
Women and Wives
📢 Durante a Copa do Mundo Feminina, o Itaú criou um filme usando a inteligência artificial para imaginar as seleções nacionais que poderiam ter existido durante os 40 anos em que mulheres foram proibidas de jogar futebol.
⚽ E a Orange Telecom produziu também um filme usando inteligência artificial para demonstrar equidade de gênero no futebol.
💐 Terminei de assistir “As flores perdidas de Alice Hart”, série sobre relações abusivas e recomendo muito.
🧠 Uma longa conversa sincera com Sam Altman, CEO da OpenAI (ChatGPT), sobre inteligência artificial.
Tchau e um ótimo fim de semana.
M
Adorei! Comprei correndo o livro da Liv. Me fez pensar no artigo da Jia Tolentino, The Age of Instagram Face. Vc leu?
Sou doida pra ler o livro da surina 🍃 gosto muito da News dela, o livro deve ser um bom concentrado de sua literatura. Quero muito tb ler o novo da liv, tenho a origem do mundo e gosto muito do jeito que ela organiza os fatos históricos - alem do desenhos serem incríveis. adorei suas dicas, obrigada por me colocar aqui. Beijo