Espiral #85: Ocupação do espaço público
Divagações sobre ocupar o espaço público no mundo
Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde o meu dia a dia em Berlim à música, arte, cultura, inovação e literatura. Mensalmente - fora do verão (vou assumir) - eu me dedico a destrinchar um tema com profundidade, como a felicidade, comida, comunidades, criatividade e inteligência artificial e um dossiê sobre Berlim. Considere apoiar mensalmente a Espiral ou me pague um café.
Trilha sonora para esta edição: When It’s Going Wrong, Marta & Trick
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Os dias quentes de verão chegaram sem clemência em Berlim. O termômetro bateu 34ºC, lembrando que ar-condicionado na Alemanha é artigo de luxo, assim como ter aquecimento em casa no Brasil.
No domingo passado, eu peguei o meu kit praia e fui tomar sol numa praça, que parece um parque, porque estava impraticável ficar dentro de casa. Pendurei a rede, estendi duas cangas na grama e tirei uma pilha de livros da sacola. Arrumei meu cantinho como se ali fosse morar por alguns dias.
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Estava tomando sol quando apareceu um homem com um rolo de fita de plástico branca e vermelha nas mãos. Analisou o terreno e começou a isolar uma grande área à nossa frente. Achei que se tratava de alguma obra, mas aí caiu a ficha de que era domingo, dia sagrado na Alemanha, em que este tipo de profissional, que passou pela minha cabeça, está curtindo o descanso dos justos.
Passou a fita por diversas árvores formando um grande retângulo. Quando terminou, se sentou bem no meio e tirou um livro da sacola. Era exatamente a área que eu tinha comemorado o meu aniversário semanas antes. Comentei com o Ola que provavelmente ele estava guardando o lugar para alguma festa.
Logo na sequência chegaram mais três rapazes. Ele largou o livro, se levantou, conversou com os rapazes e saiu do parque. Então eu vejo ele voltando dentro de uma van vermelha gigante, que simplesmente atravessou o gramado, numa área proibida para carros. Tão logo foi estacionada, os rapazes se juntaram em torno dela e começaram a tirar caixas, mesas, cadeiras, garrafas de água, toalhas, louças e outros objetos.
Curiosa como sou, saí da minha posição gato esperando carinho na barriga e me sentei para observar a produção. Não parava de sair coisas da van gigante. Eu fiquei maravilhada. Eles transformaram o espaço público em privado. Diferentemente do que muitos possam pensar, eles eram alemães.
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Quando pensei em comemorar o meu aniversário naquele mesmo lugar, eu tentei convencer o Ola a levar uma mesa. Queria colocar uma toalha adorável, enfeitá-la com flores e espalhar a comida em louças bonitas por toda ela. Mas ele apenas riu da minha cara. Não tive a mesa, mas alguém ali teria não apenas uma mesa, mas três!
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Almoçando num restaurante próximo ao parque, eu não conseguia parar de falar sobre o assunto com o Ola.
Divaguei sobre o uso de espaço público, algo que carecemos no Brasil, seja por segurança, seja por falta de incentivo. Hoje acho estranho ver os parques com muros e as praças apenas enfeitando a cidade.
Lembro-me quando as festas de ruas ocupavam o centro de São Paulo. Eu mesma ocupei um beco, uma praça e uma rua com festas entre a Lapa e a Barra Funda. Foi espetacular o que eu senti por conseguir fazer tais ocupações, porque a rua é nossa. E, tê-la à nossa disposição muda muito a nossa relação com a cidade. A gente cuida e a percebe mais. Passamos a viver a cidade. A cidade passa a ser nossa.
Ver os parques e áreas verdes serem privatizados em São Paulo distancia ainda mais essa possibilidade de ocupar o espaço público. Em Berlim você pode levar até a sua churrasqueira para o parque se quiser.
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Não aguentei a curiosidade e voltei para espiar como andava a produção. As mesas, todas com toalha branca e cadeiras, já esperavam os convidados próximas da fita que isolava a área. Duas mesas foram enfileiradas na parte maior do retângulo e as outras duas posicionadas cada uma de um lado nas laterais. Sobrou uma “pista” no meio. Seria para dançar?
Esconderam um gerador atrás de uma das árvores fora da área de isolamento. Uma mulher distribuía cuidadosamente pratos e talheres nas mesas, enquanto afastava um microfone que esperava por seu interlocutor. Um dos rapazes conectava duas caixas de som pequenas nos cantos imaginários.
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Eu já vi bastante coisa por aqui, mas foi a primeira vez que vi alguém isolar uma área dessa maneira em espaço público. Nem sei se é permitido, mas desconfio que não. Provavelmente a fita deve ter sido tirada tão logo a produção ficou pronta, mas não fiquei para ver aonde aquilo iria dar. Eu tinha um show em poucas horas para ir. No entanto eu saí me perguntando se seria uma festa de casamento.
Para que pagar por um espaço privado de evento se você tem uma bela área verde fresca com sombra à sua disposição? Eu admirei. Pareceu-me ousada toda aquela produção.
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Num dias desses, eu me deparei com uma banda de cordas e metais formada por idosos num canto do Mauerpark. Eles tocavam uma música muito tradicional enquanto uma roda de pessoas rodavam de braços dados. Iam para lá e para cá levantando uma das pernas a cada 4 passos e então retornavam.
Fiquei assistindo até um homem se aproximar sorrindo. Convidou então eu e meu amigo para dançarmos. Eu não dancei. Senti que desestabilizaria a coreografia tão bem ensaiada.
Ele me contou que este mesmo grupo se encontra semanalmente neste mesmo lugar do parque há mais de 20 anos para celebrar o verão. Achei bonito. Fiquei pensando no quanto meu pai adoraria ter este tipo de programa à mão.
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Eu gosto muito quando passeio pelos parques e vejo festas produzidas acontecendo. Sempre tem uma mesa com flores. Foi a partir daí que veio a ideia de eu ter uma também no meu aniversário. Ou vocês acham que eu tive essa ideia sozinha?
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Quero me aprofundar mais neste tema sobre ocupar o espaço público e sobre as cidades pensadas para as pessoas.
Barcelona, por exemplo, está com um projeto para fechar diversas ruas para carros transformando-as em verdadeiros bulevares com bancos e jardins. Claro que tem muita gente torcendo o nariz, mas está ficando bonito.
Em Berlim, temos várias ruas se tornando “ruas de bicicletas”. Nelas só passam carros em trânsito local. Eu gosto de andar bem no meio da faixa para que o carro atrás tenha que acompanhar meu ritmo. “Sai que essa rua é minha!” Logo eu, que nunca acharia que pudesse viver sem ter carro.
Mas nem tudo são flores por aqui. Há duas semanas, pararam o trânsito em Berlim com um protesto com cerca de 8 mil ciclistas reivindicando o que estão tentando nos tirar. O governo local está priorizando os interesses dos motoristas de carros em detrimento dos nossos (ufa, não sou mais motorista!), ao congelar a construção de novas ciclovias planejadas e até mesmo fechar algumas que já foram concluídas. O plano do partido CDU é eliminar qualquer ciclovia planejada que afete faixas de ônibus, restrinja o transporte público, tráfego comercial ou de entrega, ou leve à eliminação de várias vagas de estacionamento. Já vi essa história antes.
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A decisão de ir no show do Depeche Mode foi o que me prendeu em Berlim no domingo. Com o calor que estava, eu teria fugido cedo para lagartixar num lago. Mas acabei no meio da produção de um grande evento particular numa praça-parque. Obrigada Depeche Mode, senão eu não teria tido assunto para essa newsletter.
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O show aconteceu no estádio olímpico que eu não conhecia, uma construção monumental com a típica arquitetura que predominou na era nazista. A entrada principal é emoldurada por duas torres monumentais de 35 metros de altura, entre as quais os anéis olímpicos estão suspensos. Inspirado no Coliseu de Roma, o estádio é um monumento projetado para mostrar o poder e a supremacia da Alemanha para o resto do mundo, não apenas em termos esportivos, mas também na forma como suas construções e arquitetura dominam a paisagem.
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Um amigo, posicionado no gargalo do palco, me salvou. Quando o show começou, eu flutuava a caminho para ficar aos pés do Dave Gaham. A experiência de estar na cara do gol traz uma perspectiva muito diferente do jogo. Você se sente parte dele. Ainda estou me recuperando da emoção que foi assisti-los. A turnê deles é gigante e eles voltam à Berlim em fevereiro de 2024 #ficaadica. Por enquanto, o Brasil não aparece na lista.
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Terminei de ler “A vida pela frente”, de Émile Ajar/Roman Gary. Enquanto absorvo a leitura, eu deixo este texto sobre o livro e a curiosa história em torno do autor escrito pela
. Lê-lo na sequência de “Marcas de Nascença”, de Nancy Huston, me fez achar que estou lendo os melhores livros da minha vida numa tacada só. Na lista dos “5 melhores de julho” eu falarei mais sobre ele. Mesmo estando no meio do mês, eu duvido que algo me atravesse no mesmo nível que esse livro me atravessou. Estou impactada.O filme italiano “Rosa e Momo”, no Netflix, com a Sofia Loren no papel principal, foi inspirado no livro, mas ainda não assisti. Não sabia dele até ler o livro, mas por ora vou esperar a leitura esfriar um pouco para não me decepcionar.
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Assisti “Asteroid City”, o novo filme do Wes Anderson. É um filme “ame ou odeie”, mas eu gostei. A estética, o elenco estelar e a forma como ele trata as questões e confusões do mundo me fazem ver Anderson como um gênio. Numa crítica no NYTimes, a autora fala sobre uma cena que remete ao “Um Bonde Chamado Desejo” e relembra o famoso grito de Blanche “Eu não quero realismo. Eu quero magia!” Para mim, o filme é sobre isso. Provocativo, divertido e nos leva para um mundo bem imaginativo.
My Cosmo is Mine
♡ Gostei tanto deste texto do Geraldo Mayrink sobre o Zé Celso escrito em 1969;
💻 A gente falando da Web3 e as pessoas já estão discutindo sobre a Web5;
🤖 Sei que ninguém aguenta mais o assunto, mas adorei este texto da Giselle Beiguelman sobre o comercial do carro com a Elis Regina;
🤳🏻 Já aderiu ao Threads? Este artigo diz que vamos nos arrepender de fazê-lo;
🎛 Queria ir neste festival;
📻 O que os jovens estão consumindo de música hoje? Dica mara no
;🛠️ Estava fechando esta edição e vi este artigo (também na newsletter da
) sobre a tristeza que São Paulo vai virar com o novo plano diretor. Cada vez mais a capital paulista se distancia do conceito de “cidade para as pessoas”;💬 Eu adorei este texto do
sobre os ótimos comentários feitos na newsletter dele, que vai no caminho oposto dos desoladores comentários feitos na era digital. E, adorei a edição que ele fez “open mic”, que rendeu quase 600 comentários com um monte de coisa para aprender por lá;😵💫 Chocada com essa informação de que uma empresa de inteligência artificial afirmou ter criado 100 milhões de novas músicas, que é quase o equivalente ao catálogo inteiro de músicas disponíveis no Spotify;
🤦🏻♀️ Usando o WiFi para 'ver' as pessoas através de paredes em detalhes;
📕 Estou lendo “Cidade Caminhável”, de Jeff Speck, e “Berlin Stories”, editado por Philip Hensher;
🚴♀️ Quando penso em mobilidade urbana, sempre me vem o excelente livro “Diários de Bicicleta”, de David Byrne, à mente. Caso ainda não tenha lido, eu recomendo muito;
🎞 Quero assistir “Close”;
🎧 Apaixonada pelo álbum “Liberdade”, de Jonathan Ferr, que vou ver ao vivo neste sábado;
☁️ Gentileza é como travesseiro por
.Tchau e um ótimo fim de semana. Nos vemos em breve! E me escrevam contando histórias que estão vivendo por aí. Vou adorar ler. 😘
Agora com vontade de jogar todas as leituras do mestrado pro alto e fugir pra algum lugar tranquilo pra ler “A vida pela frente” ❤️
Essa fase de abertura em sp não peguei, cheguei já tava pronto. Muitas conquistas mesmo. Até no verde né? Meu marido fala que quando criança sabia qual avenida tinha árvore. Mudou muito! Recife não tem a mesma vibe de praia que o Rio. E acho triste. Também não tem o mesmo calor haha o que acho ótimo. Acredito que o calor influenciou muito a praia ser usada o dia inteiro e a noite. Está rolando projetos e reformas na orla de lá, espero que dê mais vida!