Olá, eu sou a Lalai e essa é a Espiral, newsletter semanal dedicada a assuntos aleatórios, desde minha vida em Berlim à música, arte, cultura, tecnologia e literatura. Mensalmente eu me dedico a destrinchar um tema com profundidade, como a felicidade, comida, comunidades e criatividade e inteligência artificial. Convido você a considerar apoiar a Espiral com o valor mensal de uma cerveja.
Esta edição é uma resposta à carta aberta escrita pela , da brilhante newsletter , para falarmos sobre nossa experiência como imigrante. A carta original pode ser lida aqui.
Trilha sonora para acompanhar esta carta: berline-se
“Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.” - Rosa Luxemburgo
Oi, Vanessa. 😊
A primavera, que mal chegou por aqui, já está indo embora. Alguns dias bem calorentos tem me feito sair correndo para a rua atrás do sol. Fico pedalando a esmo me embrenhando por florestas, lagos e parques que cercam a cidade.
Gosto da magia que se espalha por Berlim nesta época do ano, quando ela sai do casulo após meses na escuridão. Aprecio cada movimento: O abrir dos olhos, o olhar com cuidado em volta, a respiração, o sorriso e o encantamento que a rua vai ganhando. O espaço público vai sendo ocupado, tão diferente de São Paulo, cidade de onde eu vim.
Aqui todo mundo toma conta de tudo. Uma das cenas mais divertidas sobre ocupar o espaço público foi o dia em que vi um rapaz almoçando, todo fanfarrão, sentado em cima de uma caixa alta de energia elétrica para aproveitar o sol que se espalhava nela. Ao lado dele, uma caixa de som tocando techno, claro!
As pessoas se empoleiram onde dá. Os canais ficam concorridos. Aliás, você sabia que Berlim tem mais canais do que Veneza e Amsterdã? Eu fiquei surpresa quando soube. Apesar de morar numa cidade culturalmente vibrante, o que me causa FOMO são os dias ensolarados.
Diferentemente de você, ter crescido em São Paulo me fez olhar pouco para a natureza. Mal me lembro dos ipês. Lembro-me apenas das árvores tímidas e magras que ocupavam a calçada de casa, no Jardim Paulista. Acostumei-me tanto com o concreto que passei anos viajando apenas para cidades grandes, parecidas com São Paulo, onde eu me sentia mais à vontade. Hoje eu prefiro o mato.
Em Berlim, a natureza roça em mim num gesto íntimo indecoroso desde que cheguei. Some numa longa pausa no inverno, o que me deixa doente por falta de suas carícias. Como você lida com o mês de novembro? Aí no norte os dias são ainda mais curtos do que por aqui. Para mim, ele é o mais difícil de todos. Lido mal com a escuridão. A noite, a qual sempre gostei, fica longa demais. Dezembro é salvo pelos animados mercados de natais que iluminam toda a cidade.
Aliás, uma das coisas que Berlim colocou na minha vida é mais arte, afinal a cidade tem 440 galerias e mais de 170 museus, com alguns novos ainda a serem inaugurados. Inclusive, um dos meus favoritos em Estocolmo, o Fotografiska, terá uma filial aqui em breve.
Todavia, é na natureza onde me sinto mais à vontade. É nela que escapo da minha pele imigrante e me camuflo como uma local agora que aderi à cultura FKK.
Uma das coisas que gostei ao ler a sua carta, foi perceber nas entrelinhas detalhes que me são tão claros após 15 anos dividindo a vida e a cama com um sueco. Não sei se já contei, mas eu costumava achar que um dia moraria na Suécia. Foi nela que desenvolvi meu grande amor pela natureza e onde me casei em 2013, numa ilha chamada New Älvsborg.
Quando decidimos ir embora do Brasil, a Suécia sequer foi cogitada. Preferimos mantê-la presente nos agradáveis passeios de verão, quando atravessamos o Mar Báltico, para nos esbaldar com almoços regados à frutos do mar e com o melhor mexilhão que já comi. São dias longos animados à beira mar onde a noite nunca chega por inteira.
Pensei bastante no que você escreveu sobre a linguagem. Eu não falo alemão, mas frequento uma academia onde não tem aulas em inglês, o que é comum encontrar por aqui. Há um ano faço yoga de 2 a 3 vezes por semana em alemão. Inicialmente as vozes eram, como você disse, meros ruídos, mas hoje soam como cânticos para mim. Gosto delas. No início, reconhecia algumas palavras básicas, mas prestava pouca atenção. Comecei então a estudar algumas frases em alemão comuns em aulas de yoga para ficar menos alheia. No momento em que essas frases são proferidas em aula, eu sinto um raro “pertencimento” que sempre nos escapa quando somos imigrantes:
“Atme tief ein und aus.” (Respire profundamente)
“Drehe dich nach rechts.” (Gire para a direita)
“Der Herabschauende Hund.” (O cachorro olhando para baixo)
“Das Kind.” (Posição da criança)
“Der Lotus Sitz.” (Posição de Lótus)
Sou passageira mesmo me sentindo em casa. No dia a dia é fácil se virar em inglês, mas menos do que as pessoas imaginam. Muita gente não fala inglês, especialmente as que trabalham no comércio. Muitos funcionários e professores também não falam inglês na academia onde eu malho.
Eu fico sempre constrangida quando estou numa situação em que não consigo me virar, porque estando aqui há 3 anos eu deveria me sair melhor. Todavia, não aconteceu esse momento mágico, então sigo de mãos dadas com muitos conhecidos que desistiram de aprender alemão por ele ser tão difícil.
Eu nunca fui boa para aprender novos idiomas e, de repente, mudei para um dos países onde a língua oficial é uma das mais difíceis do mundo. Animada no início, eu me matriculei num curso intensivo de 4 horas diárias e gastava mais 2 horas do dia para fazer a lição de casa. Não conseguia fazer mais nada além de estudar e, ao final do dia, estava tão esgotada que me sentira um pano de chão.
Terminei o primeiro módulo mal conseguindo formular uma frase. Escrevi sobre a minha vida analfabeta em Berlim depois de chorar vezes seguidas pela incapacidade em aprendê-lo. Já cogitei ir embora da Alemanha em busca de um país com uma língua mais acessível e, de bônus, mais solar, mas confesso: Eu amo Berlim.
Apesar de tudo, eu aprecio a língua alemã e quero retomar os estudos em breve, especialmente porque, como você disse, “um dos elementos mais importantes para caracterizar um país é a língua.” E, para se sentir parte dele também. Senão, ficamos na eterna sensação de estar metade dentro, metade fora ou na borda.
A língua alemã tem muitas peculiaridades que traduzem o que é ser alemão. Um exemplo, é o fato do verbo estar no final das frases. Ou seja, é necessário esperar a pessoa terminar de falar para saber sobre o que ela está falando, tão diferente de nós brasileiros, que falamos todos ao mesmo tempo e sempre cortando o outro. Em alemão você precisa prestar atenção, precisa deixar o outro falar.
Os artigos são interessante também e ao mesmo tempo um #deusnosacuda, por conta de sua complexidade de uso: Feminino, masculino e neutro. Em tempos de discussão sobre a questão de gênero, é sensacional ter um artigo neutro já inserido no idioma. Gosto do fato de “criança” ser acompanhado do artigo neutro: “das kind”, afinal não sabemos em qual gênero a criança irá se sentir.
Mas claro, está rolando um bafafá com o novo prefeito de Berlim, pois de acordo com as regras do alemão, “um cidadão masculino” é “um Bürger”, “uma cidadã feminina” é “uma Bürgerin”. Mas quando falamos cidadãos no plural, o masculino se aplica automaticamente e eles são chamados de “Bürger”. Querem mudar para ter “cidadãos” para o modo neutro, mas o prefeito declarou que se recusará a usar linguagem neutra em relação ao gênero em seu cargo, insistindo que quer usar uma linguagem “que todos entendam.” Esta história ainda vai longe porque aqui nada fica por isso mesmo.
Gosto da fartura de palavras para traduzirem expressões e/ou frases inteiras, como “Wanderlust” e “Zeitgeist”. A lista é grande e vou colecionando todas num caderninho. Muitas delas são poéticas, como “Fernweh”, o desejo de estar em lugares distantes ou nostalgia por estar em lugares que não se conhece, e “Augenblick”, momento fugaz ou instante significativo, muitas vezes associado à percepção de algo belo ou profundo.
Porém, mesmo não falando alemão, eu sou uma pessoa muito diferente da que chegou aqui em outubro de 2019, o que faz eu entender o que seu amigo dinamarquês falou sobre você parecer tão sueca. Eu ouço bastante de amigos diante de alguns comportamentos “Lalai, você está ficando muito alemã.”
Quando digo “vamos marcar um café” para alguém, eu preciso marcar o café. Não se fala por falar. E, o mais notável, agora faço planos com meses de antecedência, algo o qual eu fugia. Vai fazer um jantar em casa? Caso tenha um alemão na lista de convidados, trate de convidá-lo com pelo menos duas semanas de antecedência ou, se puder, um mês antes. Há um mês, fui convidada para um passeio de barco que acontecerá só no fim de junho! Serão 3 meses esperando pelo passeio. Também não estranho mais se alguém me convida para jantar às 18h, porque aqui a ordem é comer cedo.
Morar em Berlim me trouxe muita coisa nova e ainda estou me acostumando com muitas delas. Moro num apartamento que é a metade do tamanho da casa em São Paulo onde vivi por 13 anos. Ganho menos dinheiro. Faço a faxina semanal em casa. Aprendi a cozinhar e a gostar de aspargos. Passei a me exercitar e me apaixonei pela yoga e meditação. Berlim trouxe de volta a escrita para a minha vida e tirou de mim o modo “produtividade” em que eu vivia. Tenho aprendido a diferença entre trabalho e lazer. E, gostado muito do segundo.
Sempre que eu saio para a rua, eu aprendo algo novo. Os alemães no geral não são tão gentis, o que foi difícil acostumar após passar a maior parte da vida morando num país onde ser simpaticona é a regra. Será que tem a ver com o idioma?
Mas a Alemanha tem seu passado sombrio que segue embrenhado em todos os lugares por onde andamos. Esta história continua respingando na identidade alemã e, provavelmente, respingará ainda por muitos anos.
Não sei se é o inferno astral ou se estou de fato exausta, mas tenho tido muitas crises de choro. Nesta semana, eu chorei na aula de yoga. Não sei se a professora percebeu. Eu estava tentando fazer uma ponte e ela correu para me acudir. Posicionou-se atrás de mim oferecendo seus tornozelos para eu me apoiar. Quando finalmente me vi totalmente contorcida, eu senti as lágrimas rolando para o mate. Foi como se conseguir fazer aquela ponte tão perfeita significasse não estar mais pela metade, mas estar totalmente dentro. As coisas não têm acontecido da maneira como eu gostaria, porém sigo tentando e mantendo a peteca no ar.
Sempre que me sinto assim, lembro-me de uma conversa que tive com uma amiga há mais de dois anos. Ela morava aqui e, quando me ouviu reclamar de estar tão cansada sem motivo, logo me diagnosticou com ‘exaustão do imigrante’.
Na época, ela me garantiu que melhoraria, mas ainda tenho ondas que surgem e talvez eu esteja em meio a uma agora. No entanto, tem algo que Berlim me causa de maneira singular: Um arrebatamento constante. Sempre que saio para passear, algo me emociona pelo caminho. Talvez, como esta mesma amiga disse: “Amiga, to exausta. To cansada de me emocionar.”
Desejo à você um ótimo verão. Espero um dia encontrá-la em Estocolmo, assim como espero te receber de braços abertos em Berlim. Sinta-se convidada. :)
Um beijo,
Lalai
The Universe
Algumas dicas já passaram por aqui em diversas edições, mas trago-as de volta para complementar a edição de hoje:
🍑 Eu gosto muito dos textos e da escrita da
. Entre o que eu já li, meu destaque vai para “Nudez”, pois foi ela quem me fez fichas cair tanto sobre a nudez encarada de maneira tão natural pelos alemães quanto pelas minhas experiências com saunas na Suécia;🙎🏻♀️ Foi ao morar na Alemanha que eu me conectei com as obras de Hannah Arendt. Para começar a estudá-la, recomendo a ótima biografia “Arendt: Entre o amor e o mal: uma biografia”, de Ann Heberlein;
😂 Uma das crônicas mais divertidas que li sobre Berlim foi escrita pelo João Ubaldo Ribeiro, que passou uma longa temporada na cidade;
🎞️ Estreou um documentário sobre a Donna Summer, que morou em Munique e aprendeu a falar alemão fluente. Estou só esperando estrear por aqui para assistir;
📼 Daniel Brühl, ator de “Adeus Lênin”, dirige e atua em “A Porta ao Lado” (2021), filme que explora o tema gentrificação, que tem se alastrado como praga em Berlim;
📖 “O mundo desdobrável”, de Carol Saavedra, reúne diversos ensaios sobre o fim do mundo, permacultura, psicanálise, literatura escrita por mulheres, literatura indígena e tantas outras referências incluindo a sua vida na Alemanha;
🧟 Você já exerceu o seu direito de ser feita em Berlim? por
;🎇 A histórica noite de Berlim num ótimo texto escrito em 2014;
🪩 Para ouvir: Como a Alemanha foi reunificada na pista de dança;
🎹 Curses, um dos meus produtores musicais favoritos em Berlim;
👨🏼🎤 Bowie in Berlin;
🥺 Estou lendo “A Dor”, de Marguerite Duras, um conjunto de textos escritos sobre a angústia causada pela Segunda Guerra Mundial. Leitura visceral de tirar o fôlego.
E, se você, que está lendo esta newsletter, vier para Berlim, me dê um alô. Quem sabe não tomamos um drink para celebrar o verão que está chegando?
amei essa troca de cartas , adoro te ler - e vanessa também :)
senti tanta coisa lendo essa resposta!
incrível como a leitura nos põe num ângulo privilegiado de novos horizontes.
obrigada por responder a carta com tanto carinho! o texto me fez pensar muito muito. amei.
não achei que teria necessidade de fazer uma resposta da resposta rs mas deu vontade de escrever mais sobre esse tema.
obrigada por ser essa mulher tão interessante e interessada no mundo ❤️